Televisão:Um testemunho e uma hipótese

Nas minhas viagens pelo país, há um elemento que me fascina tanto como inquieta – as ruínas de edifícios e estruturas abandonadas, ora pontuando paisagens como chagas pulurentas, ora agigantando-se tragicamente em zonas industriais, ora alastram em impotência em aldeias, vilas e cidades.
Ao fascínio estético das leituras da luz, das cores e das sombras, dos desafios da desconstrução e da imaginação, alia-se a interpelação por vezes angustiada da memória: que homens e mulheres povoaram estes agora-destroços, o que se pensou e melhor ou pior se fez, que sonhos se construíram ou se frustraram, que riquezas se produziram ou se desmoronaram, que futuros se não cumpriram, neste chalé escanzelado entre pinheiros-mansos a olhar um mar antigo, nesta fábrica esventrada e chaminé periclitante e teimosamente hasteada, neste sanatório acometido de silvados e desespero, nesta estação de caminho-de-ferro enferrujada e destino único para o passado?...
Deu-se o caso, há uma semana, de a RTP2 transmitir (enfim, a uma hora discutível, meia-noite e meia…) o impressionante e celebrado documentário “Ruínas”, de Manuel Mozos (estreado no ano passado, mas que, por desgraça, eu não tivera oportunidade de ver), respondendo àquelas minhas inquietações e a tantas outras, numa fabulosa releitura das imagens de muitos dos sítios que conheço a partir de textos das mais variadas e surpreendentes extracções – da literatura, divulgação do património, correspondência comercial e íntima, preçários e facturas, por aí adiante.
Permiti-me abusar da vossa paciência neste meu exercício para tentar chegar a uma hipótese: numa arquitectura de serviço público de televisão assente num dispositivo de canais mais reduzido (portanto, um canal em vez da RTP1 e da RTP2), eu não teria tido oportunidade de ver as “Ruínas” de Manuel Mozos.
Abusei também da vossa benevolência com este testemunho pessoal, falando de um exemplo como poderia falar de muitos outros, para prometer discutir proximamente o serviço público justamente a partir dos conteúdos.

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