Justiça de classe

Está anunciado: a ministra da Justiça propõe-se perdoar as custas a quem desista do processo em tribunal. Vai escrito sem ponto de exclamação porque, pelos vistos, tendemos a achar normais dislates e violências deste tipo.
A medida não é apenas economicista: é profundamente reaccionária e traduz uma atitude muito grave face a um direito fundamental dos cidadãos – o de encontrar a paz jurídica, ou também a paz social, que é o que espera quem demanda ou quem é demandado num tribunal.
Trata-se, já se sabia, de um direito cada vez menos ao alcance dos cidadãos, pois a Justiça é cara, muito cara, até para a assim chamada classe média. Basta ver o valor das custas, para não falar dos honorários do advogado. Manter uma querela é um luxo acessível a quem tem muito dinheiro. Pelos vistos, a ministra quer reservar a Justiça para quem o tem.
A principal perversidade da anunciada medida está no incentivo à renúncia à Justiça, através de uma figura – a desistência – que deveria fazer arrepiar os profissionais do foro e os actores políticos, pela ambiguidade do seu significado em cada circunstância, pela imagem que projecta do autor ou do arguido, independentemente de quem propõe e de quem aceita a desistência, e pelo aprofundamento da convicção da falência da Justiça que a solução gera junto dos cidadãos.
 O problema da projecção da imagem das partes no processo, especialmente do arguido, não é de somenos importância.
Imaginemos que A, pessoa pacata, com a vida arrumadinha e com rendimentos aceitáveis mas à justa para os encargos com a família e esganando o orçamento para suportar custas, honorários de advogado, etc., está acusado da prática de certo crime por B, pessoa com proventos superiores – por vezes muito superiores – disposta gastar o que for preciso para levar o pleito até à derradeira instância.
A dada altura, continuemos aqui a imaginar, surge – não importa a origem nem a motivação – a hipótese de um acordo que poderá fazer extinguir o processo, tentação eventual para A, porque pode aliviar a pressão sobre a vida pessoal, familiar e profissional e suspender os encargos com o processo.
A tentação será grande, mas, cedendo-lhe, A ficará sempre com a impressão (ou um dia há-de ser tentado a pensá-lo) de que o acordo não foi afinal tão honroso como esperava. Sobretudo, jamais poderá gritar a plenos pulmões: “eu estava acusado deste ou daquele crime e os tribunais não me deram como culpado!” Porque, por mais ou menos discreto que seja o processo, alguém sabia dele e a sombra de que “algo” ficou por esclarecer há-de pairar muitos anos sobre o seu amor-próprio.
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