Sobre a definição de serviço público de televisão

Compreende-se a inquietação dos cidadãos perante a (aparente) inexistência de uma definição de serviço público de televisão, pelo menos tão perceptível, tão tangível e tão mensurável como as relativas a outros serviços públicos.
Se usarmos o exemplo dos serviços de águas invocado hoje por Eduardo Cintra Torres, no debate a RTP que o sítio da Fundação Francisco Manuel dos Santos está a promover, fica muito clara para o comum dos cidadãos a relação entre os preços e as taxas que estes pagam e a quantidade e a qualidade do bem que lhe é fornecido – a água de abastecimento – e do serviço que lhe é prestado com a drenagem das águas residuais.
No entanto, nem todos têm a preocupação de informar-se sobre dados essenciais à formação de uma cidadania informada e esclarecida, como: (i) os níveis de atendimento, isto é, a percentagem de população servida; (ii) os parâmetros da qualidade da água de abastecimento na rede; (iii) os níveis de tratamento das águas residuais; (iv) a qualidade do meio hídrico receptor das águas residuais tratadas; (v) os níveis de eficiência dos sistemas (custos na origem vs. taxas de perdas e desperdícios vs. encargos para o consumidor; (vi) e etc., etc….
Detive-me deliberadamente naquelas variáveis para chamar a atenção, por analogia – se a analogia pode ser consentida aqui –, para as dimensões tantas vezes intangíveis de uma apreciação (e de uma valoração!) dos bens e serviços de natureza pública colocados à nossa disposição como decorrência da nossa condição cidadã: o Estado tem obrigação de suprir as nossas necessidades de água, não apenas com um abastecimento em quantidade e qualidade adequadas, mas também prevenindo os efeitos nefastos para o meio ambiente (sobre-exploração na origem e poluição do meio receptor).   
O moderador teve a gentileza de deixar-me o desafio de enunciar, “em termos concretos, o que entendo por serviço público”, nomeadamente de televisão.
Creio que a própria Lei da Televisão apropria e densifica o que me parece corresponder a um largo consenso sobre conceito de serviço público de televisão e que o legislador tem tido o cuidado de estabelecer a diferença entre dois patamares distintos:
a)      Por um lado, estabelece os “fins da actividade de televisão” (Art.º 9-º), isto é, para todos os operadores – portanto, público e privados;
b)      Por outro lado, fixa muito concretamente as “obrigações específicas” da concessionária de serviço público (Art.º 51-º).
Quanto aos fins impostos a todos os operadores, a lei diz que são: a) Contribuir para a informação, formação e entretenimento do público; b) Promover o exercício do direito de informar, de se informar e de ser informado, com rigor e independência, sem impedimentos nem discriminações; c) Promover a cidadania e a participação democrática e respeitar o pluralismo político, social e cultural; d) Difundir e promover a cultura e a língua portuguesas, os criadores, os artistas e os cientistas portugueses e os valores que exprimem a identidade nacional.
Quanto às obrigações específicas do serviço público, o legislador impõe – e bem! – um programa muito vasto. Ei-lo:
a) Programação variada e abrangente que promova a diversidade cultural e tenha em conta os interesses das minorias;
b) Acesso do público às manifestações culturais portuguesas e sua cobertura informativa;
c) Informação isenta, rigorosa, plural e contextualizada dos principais acontecimentos;
d) Produção e transmissão de programas educativos e de entretenimento, com objectivos de formação, para os públicos jovem e infantil;
e) Transmissão de programas de carácter cultural, educativo e informativo para públicos específicos, incluindo as comunidades imigrantes;
f) Participação em actividades de educação para os meios de comunicação social;
g) Emissão de programas em língua portuguesa, de géneros diversificados, e reserva à produção europeia em percentagens superiores às exigidas a todos os operadores;
h) Apoio à produção nacional de obras cinematográficas e audiovisuais e co-produção com países europeus e da comunidade de língua portuguesa;
i) Emissão de programas destinados especialmente aos portugueses e nacionais de países de língua portuguesa residentes fora de Portugal;
j) Garantia da possibilidade de acompanhamento das emissões por pessoas com necessidades especiais, através da legendagem, interpretação gestual, audiodescrição ou outras técnicas, assim como programação especificamente direccionada para esse segmento do público;
l) Exercício dos direitos de antena, de resposta e de réplica política;
 m) Emissão de mensagens do Presidente da República, do Presidente da Assembleia da República ou do Primeiro -Ministro;
n) Cedência de tempo de emissão para divulgação de informações nomeadamente em matéria de saúde e segurança públicas.
Note-se que, além da salvaguarda da independência perante o Governo, a Administração Pública e demais poderes públicos, bem como a possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião, o serviço público garante a observância dos princípios da universalidade e da coesão nacional, da diversificação, da qualidade e da indivisibilidade da programação, do pluralismo e do rigor, isenção e independência, bem como da inovação (Art.º 50.º).

Em conclusão: Assim como, no caso dos recursos hídricos fruídos pelos cidadãos, o Estado não está obrigado a satisfazer apenas um dever de aprovisionamento e de satisfação de uma necessidade básica, mas a garantir o direito a um meio ambiente saudável e equilibrado; também na construção permanente da democracia informada e conscientemente participativa o Estado não está obrigado apenas a garantir a possibilidade de existência de meios de “abastecimento” cultural, informativo e educativo capazes de satisfazer as múltiplas necessidades dos cidadãos, pois cabe-lhe a incumbência de assegurar (inclusivamente através de meios próprios) a produção, distribuição e controlo de qualidade das “provisões” informativas, culturais, educativas, recreativas, etc.

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