Jornalismo e crianças

A Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco (CNPCJR) concluiu hoje uma série de seminários, iniciada em 3 de Maio de 2007, em parceria com o Instituto de Segurança Social (ISS) e o Sindicato dos Jornalistas (SJ), através dos quais dirigentes de comissões concelhias, juristas, psicólogos, professores, jornalistas e outros cidadãos de profissões, saberes e experiências bem distintos reflectiram em conjunto e partilharam conhecimentos, experiências, dúvidas e anseios sobre a complexa problemática da promoção e defesa dos direitos da criança e do jovem.
Tido tido a honra e o proveito de participar activamente em todos os seminários, incluindo com o privilégio do uso da palavra, partilho aqui as palavras que esta manhã disse na sessão de abertura do que, tendo sido o "seminário final", há-de ser afinal o ponto de partida para novas e mais exigentes etapas:

A reunião que estamos a iniciar apresenta-se sob a designação "seminário final", mas não representa um ponto de chegada, um terminus para algo que começou e por aqui acabaria.

Pelo contrário, é apenas uma meta, uma escala num porto de reabastecimento de reflexão partilhada, permitindo recobrar ânimo e forças para retomar uma jornada que é forçoso prosseguir.
O riquíssimo programa deste seminário permite antecipar que a iniciativa de hoje sintetiza e torna consequente a reflexão interprofissional realizada ao longo destes anos, bem como a profícua partilha de saberes, experiências e inquietações tendo como preocupação primeira a promoção dos direitos da criança e do jovem.
As reflexões e ensinamentos, assim como as dúvidas e angústias que ainda subsistem, estarão certamente vertidas no manual de competências comunicacionais e nos guias que aqui vão ser apresentados e sobre os quais nos debruçaremos neste encontro.
Mas a nossa missão não acaba aqui.
De facto, esses documentos não são um produto acabado, e muito menos uma espécie de troféu a ostentar na galeria das realizações sobre o qual repousará a poeira da inutilidade se não assumirmos que, doravante, eles passam, afinal, a pesar sobre os nossos ombros e a exigir mais de nós.
Para os jornalistas, este ciclo de seminários e este diálogo interprofissional tão gratificante evidenciou um conjunto de exigências essenciais:
  • a de renovado e empenhado esforço na capacitação intelectual, técnica, cívica e até política;
  • a de aperfeiçoamento profissional e de aprofundamento do juízo crítico;
  • a de robustecimento das convicções éticas e de inquietação com os direitos dos outros, em particular os da criança.
Não basta ter sensibilidade para o tema, talento para manusear palavras e imagens e engenho para explorar o filão das emoções alheias com mais ou menos escrúpulo.
Talvez a receita resulte a curto prazo e torne a mercadoria episodicamente atractiva, mas não produz senão um eco no deserto, mesmo que o estampido faça jorrar proventos financeiros de circunstância.
Nos anos noventa, quando discutíamos a revisão de definição legal e convencional de jornalista, o meu camarada José Manuel Marques – cuja memória saúdo – insistia, apaixonada e generosamente, num requisito fundamental para essa definição: a capacidade de avaliar os efeitos do seu trabalho.
Recordo-o, não só porque esse requisito corresponde afinal a um preceito deontológico de enorme importância – o da assunção da responsabilidade pelos actos profissionais, portanto também das suas consequências –, mas também porque essa sua "teimosia" se fundava em padrões de exigência hoje muito actuais.
Não há dúvida de que muitos progressos na promoção dos direitos da criança são efeito do debate público impulsionada pelos media; assim como é certo que os jornalistas têm contribuído para a denúncia de abusos, para a discussão das causas e soluções e para o escrutínio dos poderes, parecendo pacífico que há um esforço genuíno na diminuição de práticas profissionais intrusivas da privacidade das crianças e das suas famílias, bem como de violações por vezes chocantes dos seus direitos.
Não descansemos, porém.
Em primeiro lugar, porque é dever do jornalista pautar-se, num esforço incessante, pelos mais elevados padrões de rigor, honestidade e de escrúpulo ético-deontológico.
Em segundo lugar, porque o actual contexto social e económico o expõe a renovadas armadilhas, susceptíveis de ameaçar a sua integridade profissional e, pior, os direitos de outrem.
Com efeito, a crise económica e as suas graves consequências sociais podem oferecer condições propícias à exploração fácil – e porventura sensacionalista (senão mesmo violadora de direitos) – do caso singular, estimulando as emoções e manipulando a mera curiosidade, limitando-se a apresentá-lo como "exemplo" do que poderia ser um catálogo de desgraças e de estereótipos, em detrimento da problematização das causas, da sua completa contextualização e da enunciação plural de soluções para os problemas de fundo que estão na sua origem e que os perpetuam.
Tal receita, aparentemente proveitosa em tempo de crise também para empresas de comunicação social, pode encontrar desculpabilização fácil nas próprias transformações operadas nos media nos últimos tempos, e em particular nas limitações materiais e operacionais que se têm aprofundado.
Mesmo que, por vezes, se desperdicem páginas jornal e espaços de antena em futilidades e pretensas utilidades, é frequente a justificação de que não é possível ir além da abordagem superficial e muito incompleta dos temas por falta de espaço, de tempo ou de profissionais...
A gravidade crescente da situação económica e social que atinge milhares e milhares de famílias, com o risco de preocupantes retrocessos no respeito pelos direitos das crianças impõe, pelo contrário, que se afaste para bem longe dos media a fácil tentação de invocar o seu próprio estado de necessidade para transigir precisamente onde se deve ser mais exigente e mais firme.
Disse
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