Diário Off (9)
Relativismos
históricos. A pandemia de Convid-19 neutralizou qualquer possibilidade de
assinalar, com a densidade que se impunha, o 75.º aniversário da derrota do nazi-fascismo,
com a capitulação das forças nazis, a 8 de Maio de 1945, e assinatura da sua
rendição incondicional, em Berlim, às 0:16 horas do dia 9 na capital alemã tomada
pelo Exército Vermelho, eram já 2:16 em Moscovo, razão pela qual a União
Soviética e agora a Federação Russa comemoram a efeméride no dia 9 e não no dia
8, como a Alemanha e a França.
Devido ao
confinamento, as autoridades de Berlim assinalaram a efeméride com “cerimónias
tímidas”, tão tímidas que, apesar de ser feriado municipal na capital, poderá
nunca chegar a ser um feriado nacional, tais são as dúvidas do actual ministro
dos Negócios Estrangeiros, Heiko Mars.
Mesmo assim,
lá se manifestou a oposição da extrema-direita neonazi, cujo porta-estandarte é
o partido Alternativa para a Alemanha (AfD), e especialmente o seu presidente
honorário, Alexander Gauland, cunhando o dia 8 de maio de 1945 como dia “de derrota
absoluta”.
Björn Höcke,
o líder da AfD no estado alemão da Turíngia e fundador da facção mais extremista
do partido, “Der Flügel” (em tradução livre, “O Flanco” da terminologia militar),
foi ao ponto de, em 2017, classificar o Memorial do Holocausto de Berlim como “monumento
da vergonha”.
A AfD, como
a generalidade da extrema-direita, tem um horror
declarado à “cultura da memória e tudo faz para relativizar o passado nazi
da Alemanha, ao contrário da maioria do povo alemão e da sua chanceler.
“Jamais
poderemos esquecer. Nunca haverá um ponto final, nem uma relativização”, declarou
Angela Merkel, na sua primeira visita ao antigo campo de concentração e extermínio
da Alemanha nazi em Auschwitz, na Polónia, em 6 de Dezembro passado.
Três quartos
de século volvidos sobre o fim, na Europa, do nazi-fascismo (a II Guerra
terminou de facto com a rendição do Japão, em 2 de Setembro de 1945), e numa
altura em que o fascismo galopa a toda a brida a tentar reimpor-se, ocorre um
estranho debate sobre o real significado desta data – sobre se se tratou de uma
derrota
ou de uma libertação.
A Alemanha
foi ganhando progressivamente a consciência do significado desse dia, sobretudo
a partir da reflexão daquele que veio a ser o primeiro presidente da República
Federal da Alemanha, Theodor Heus, ao observar quatro anos depois dessa data:
“Basicamente,
8 de Maio de 1945 continua a ser o paradoxo mais trágico e questionável da
história para cada um de nós. Porquê? Porque fomos, ao mesmo tempo, libertados
e destruídos.”
Em 1975, no
30.º aniversário deste importante acontecimento, Walter Scheel, então
presidente da RFA, esclareceu: “Fomos libertados de um jugo terrível, da guerra,
do assassinato, da servidão e da barbárie”.
Uma das mais
sábias asserções de Scheel é a que a Alemanha perdeu a honra muito antes de
1945, ao permitir a ascensão de Adolf Hitler ao poder em 1933.
Nada poderia
ser mais actual do que essa consciência – ou o imperativo dessa consciência – quando
vemos o relativismo histórico e moral com que as personagens alcandoradas no
poder pela via democrática, melhor, pelo sufrágio popular, branqueiam com a
maior desfaçatez e impunidade o passado tenebroso.
Veja-se a repugnante
declaração da actriz Regina Duarte, agora secretária Especial da Cultura do
Brasil, à estação
CNN Brasil, desvalorizando despudoradamente a tortura infligida pela ditadura militar
(1964-1985) predilecta do seu amado Presidente, que aliás a serviu.
Diz ela, com
a maior desfaçatez e peçonhenta desvergonha que “tortura sempre houve”, como se
a dura repressão
exercida sobre os seus compatriotas – militantes da oposição, criadores
intelectuais, artistas e até companheiros seus de profissão – tivesse sido um
passeio Ipanema fora.
É contra
este relativismo e estas campanhas de normalização do fascismo que temos de
estar avisados e contra eles temos de agir.
O Diário Off fica novamente on na próxima terça-feira.