Nem tudo o que tem pernas anda; nem tudo o que "acontece" é notícia

Ouvi há muitos anos uma expressão que nem sei se corresponde a um autêntico e validado rifão popular ou a uma charada mais ou menos conhecida. Rezava mais ou menos assim: "Bem tudo o que tem pernas anda". A solução estava à vista: uma cadeira, por exemplo, tem pernas e não anda.
Ocorreu-me o talvez falso-rifão ou a talvez falsa-charada a propósito de uma "onda" recente e muito demonstrativa de um certo jornalismo (muito) preguiçoso, que valoriza artificialmente fenómenos, que não chegam a ser sequer epífenómenos quanto mais fenómenos, acontecentes nas redes sociais, como se revestissem os significados e as importâncias que tantas vezes se lhes atribui.
Já nem falo (fica para outra altura, se puder) do facto de jornalistas utilizarem a circunstância (e o truque) de, participando num grupo de uma rede social, aproveitarem como notícia os desabafos e as informações nele partilhados. Tal prática, mesmo tratando-se de um perfil ou de um grupo expressivamente numeroso, parece-me incorrecta, mal-educada, descortês, antes mesmo de chegar a ser anti-ética e violadora da elementar regra deontológica da lealdade. De facto, basta-me saber desde pequenino que não se escuta às portas para nem sequer discutir a deslealdade de certos processos...
Falo agora, e muito concretamente, da estranha "notícia", dada à estampa ontem, por pelo menos dois diários, segundo a qual uma iniciativa de um grupo de pessoas na rede social Facebook, destinada a mobilizar um milhão de pessoas para uma manifestação na Avenida da Liberdade "pela demissão de toda a classe política", já teria "juntado 9248 pessoas em dois dias" ("Diário de Notícias") e verificado a "adesão de menos de três dias" ("i").
Ambas as notícias merecem leitura atenta e análise de conteúdos mais competente do que a minha (ou para a qual não estou agora com tempo), ainda que tal exercício nos possa levar muito, mas muito longe... Mas o que agora me interessa relevar é o facto de:
a) Nenhuma das peças ter a preocupação de identificar os promotores de tamanha iniciativa, tendo em conta que esse é um elemento relevante para a avaliação (social, cívica, política) da importância do facto, que se pretende projectar como "evento" social e politicamente relevante;
b) A peça publicada no "i" citar mesmo um "comunicado enviado pela administração do movimento, que não se pretende identificar" (já agora, enviado a quem?!) e um "porta-voz" que não identifica, assumindo assim o pesado encargo de conferir credibilidade a uma fonte anónima (vejam bem a diferença: anónima e não confidencial);
c) Ambas assumirem acriticamente que todos os internautas que se "adicionaram" ao grupo aderiram à causa, conforme decorre dos títulos e pós-títulos e dos textos, como se todas as pessoas - os jornalistas incluídos! - que se "adicionaram" a apoiassem de facto.
Ora, basta "espreitar" o grupo para perceber de uma assentada duas coisas muito claras:
1.ª - O grupo tem um conjunto de "administradores", pelo que os jornalistas têm condições para verificar a veracidade da sua identidade, confrontá-los com perguntas e pedidos de esclarecimento, perguntar por que razões não dão a cara por um movimento que, se é tão democrático como isso e quer "demitir toda a classe política", não pode deixar de dizer quem é e ao que vem.
2.ª - Entre os "outros membros" há, nitidamente um conjunto de pessoas que, por motivações múltiplas, está ali, "à cuca", a ver o que acontece e que entre elas há até - imagine-se! - muitos jornalistas, pelo que é de perguntar, sem ofender ninguém, se todos eles "apoiam", "aderem", "se juntam" a tal "movimento"!

(O seu a seu dono e passando a publicidade, mas apenas por respeito ao direito de autor: a imagem da cadeira foi obtida aqui através da Internet como poderia ter sido noutro sítio)

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