Sim, "não é fácil assistir ao fim da linha"

Fábrica de cerâmica abandonada, junto da estação de Pampilhosa da Serra

Levo décadas de uma mania antiga de recortar artigos de jornal e de revista. Uns, pela excepcional qualidade da escrita ou pelo extraordinária profundidade do tratamento do(s) tema(s); outros, porque correspondem a algum meu interesse particular; uns terceiros, porque revestem interesse documental que antevejo úteis a prazo razoável; uns quartos, porque calculo catalogáveis numa ou mais das categorias que antecedem, mas para os quais me falta tempo para ponderada e deliberatória leitura.
Com o dobar dos anos, a crónica falta de espaço e as necessárias manobras de higiene doméstica regular, lá me obrigo a mondar pilhas de recortes e folhas de papel anotadas, tentando dolorosamente seriá-las, ora para o definitivo cesto dos papéis a reciclar, ora para as pilhas das pastas às quais prometo fiel e eterna guarda, ora para a pilha dos que ainda penso reavaliar, acabando, claro está, por deixar incólume uma parte delas...
Dei-me a pensar nisto ao olhar para uma página do segundo caderno do “Público” (P2) do passado dia 15, que guardei pelas primeiras três razões acima expostas, na qual Pedro Mexia discorre com comovente singeleza sobre as memórias, sonhos e vicissitudes da linha do caminho-de-ferro da Lousã da sua infância.
Algures, uns dias lá mais para trás, dera-me a guardar um interessante dossiê, igualmente dado à estampa no Público (“Viagem ao país que vai perder o comboio”, suplemento “Cidades”, 2/1/11), sobre o encerramento de um conjunto muito importante de linhas de caminho-de-ferro, e do qual retive logo um significativo título: “Mais vale encerrar o interior e vai tudo para o litoral”.
Tenho desde a infância (como tanta gente!) um enorme fascínio pelos comboios, apesar da bárbara violência com que, na minha geração, pretenderam gravar-nos na memória, a golpes de cana na cabeça e nas orelhas e de palmatória nas palmas das mãos, as redes ferroviárias de Portugal Continental e Ultramarino.
Pelo contrário, o comboio sempre foi, em terras lusas e noutras, essa encantadora nave de descoberta. E ainda hoje, ao cabo de quase duas décadas de deslocações pendulares entre o Porto e Lisboa, às vezes mais do que uma vez por semana, cada viagem me revela algo de novo, de fantástico, de apelo ao regresso urgente a paisagens, lugares, pormenores e memórias. E por essas e por outras razões sei, como Mexia, que “não é fácil assistir ao fim da linha”.
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