Os gémeos do Dr. Mengele, a propósito do Dia do Shoah (Holocausto)


Há 66 anos, em 27 de Janeiro de 1945, foi libertado o campo de concentração nazi de Auschwitz-Birkenau, na Polónia, criado cinco anos antes. Nele foram mortos um milhão e 100 mil seres humanos, um milhão dos quais judeus.
Ainda hoje é o símbolo do Holocausto, do extermínio decretado e executado pela Alemanha nazi que sacrificou cerca de seis milhões de judeus, além de milhões de outros cidadãos - ciganos, comunistas, dissidentes políticos, deficientes... - e por isso a data de 27 de Janeiro foi instituída como o Dia do Shoah, ou Dia do Holocausto.
Ao evocar os mortos de Auschwitz-Birkenau, tamanho foi o número, somos tantas vezes tentados a esquecer, ou a omitir, o que foi o seu sofrimento prévio à morte e à... sobrevivência de todos aqueles que os soldados soviéticos encontraram ainda com vida neste campo de extermínio.
E todavia são tristemente famosas as "experiências médicas" realizadas ali, particularmente as do famigerado Dr. Josef Mengele, entre as quais as pesquisas em gémeos, anões e outros indivíduos como "anomalias genéticas" que foram objecto de um estudo da investigadora Nancy L. Segal, da Universidade do Estado da Califórnia, nos Estados Unidos da América (EUA), uma das autoras de um impressionante livro dirigido por Arthur L. Caplan, "Quando a Medicina Enlouqueceu - A Bioética e o Holocausto" (Instituto Piaget, Lisboa, 1997).
No capítulo que lhe coube no livro, Nancy L. Segal problematiza não só a metodologia do Dr. Mengele e o uso actual de dados gerados na experimentação nazi, incluindo a perspectiva de gémeos sobreviventes acerca de tal uso, mas questões médicas, psicológicas e sociais que eles enfrentaram todos estes anos.
Entre a Primavera de 1943 e Janeiro de 1945, o Dr. Mengele usou centenas de pares de jovens gémeos masculinos, criteriosamente seleccionados logo na rampa de chegada do campo de concentração e colocados em pavilhões próprios à sua disposição. Na foto acima, da autoria de Nancy L. Segal e reproduzida na obra referida, podemos ver um sobrevivente durante um encontro que assinalou o 40.º aniversário da libertação do campo, apontando a sua própria imagem enquanto criança entre os (apenas) 157 gémeos libertados no dia 27 de Janeiro de 1945 diante dos barracões dos gémeos.
Entre a colecção de horrores, crueldade e humilhação a que foram submetidos nas experiementações in vivo de Mengele estão transfusões de sangue entre pares de gémeos; exposição a raios x; injecções de um deles com substâncias letais como o tifo, por exemplo, para comparação ulterior com o co-gémeo; pares cosidos costas com costas; pares mortos simultaneamente para serem dissecados, a fim de que se estudassem comparativamente a evolução de doenças provocadas num deles...
O livro – fruto de uma conferência em Maio de 1989 na Universidade do Minnesota para analisar o significado do Holocausto da Bioética – reúne artigos muito importantes para a discussão de temas como o reencontro dos sobreviventes com a memória do seu próprio sofrimento e a legitimidade do uso de dados das experiências dos médicos nazis pelos médicos actuais, tendo em conta a forma brutal e anti-ética com que foram obtidos.
“Em Auschwitz, éramos tratados como mercadoria: o cabelo era utilizado para colchões; a gordura para sabão; a pele para candeeiros; o ouro retirado dos dentes dos mortos ia para o tesouro nazi; e muitos de nós fomos utilizados como cobaias. Actualmente, alguns médicos querem utilizar a única coisa deixada por estas vítimas (…) Utilizar os dados nazis é obsceno e demente”, lê-se num dos testemunhos publicados na obra.
Nele, Eva Mozes Kor descreve o dia-a-dia horrível dos gémeos-cobaias, as quais eram inoculados por exemplo micróbios que produziam febres altas destinadas a registo sem que o paciente recebesse qualquer tratamento. Outra sobrevivente,Sara Seiler Vigorito, explica: “O tifo, a tuberculose e a sífilis, para citar só algumas, eram injectados nas vítimas para estudar as fases progressivas das doenças. Os pacientes não eram tratados a fim de curar a doença. Pelo contrário, eram sujeitos a observação, os dados eram registados, as vítimas eram mortas, efectuava-se uma autópsia para estudar os efeitos internos da doença, registavam-se mais dados e o corpo da vítima era exterminado”.
Aliás, “a eficácia de Mengele não permitia desperdícios. Não perdia tempo a obter o consentimento das vítimas nem com emoções mostrando compaixão. As experiências eram executadas sem anestesia ou paliativos que seriam inúteis e ineficazes”. A testemunha narra situações como a de uma incisão de bisturi ao longo de uma perna de uma criança (amarrada à marquesa) seguida de operações de raspagem do osso. “Quando acaba, atam-lhe a perna e a criança é levada para a jaula… não lhe dão nada para a dor”.      
“Ao contrário de um médico investigador ético, o cientista nazi não tinha como objectivo final a preservação da vida humana e o alívio do sofrimento”, prossegue Sara Vigorito, observando que qualquer investigador que secundarize a “vida humana, suplantada pela ciência e o progresso (…) torna-se um investigador a trabalhar à sombra de Mengele e dos homólogos nazis”.
 “Após a apresentação deste breve perfil do médico nazi, do seu sistema de valores e método de «experimentação», deverão os dados resultantes das vítimas ser reutilizados?”, questiona. “A minha resposta é que o cientista que reutiliza estes dados está a aderir aos valores e aos métodos dos médicos investigadores nazis, transportando o seu trabalho para a pesquisa contemporânea e dandos-lhes, deste modo, a credibilidade e o consentimento”.

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