Vale dos Caídos: é preciso resgatar as vítimas

Basílica de Santa Cruz do Vale dos Caídos, monumento fascista de glorificação da vitória de da repressão franquistas  

O Supremo Tribunal espanhol encerrou definitivamente, na semana passada, os recursos contra a exumação do ditador Francisco Franco da basílica de Santa Cruz do Vale dos Caídos (24/10/2019), ao rejeitar os pedidos da Fundação Nacional Francisco Franco, da comunidade beneditina ainda ali instalada e da Associação de Defesa do Vale dos Caídos.

Falta agora dar passos ainda mais complexos para esvaziar o sinistro lugar dos restos mortais pelo menos de algumas das quase 34 mil vítimas da guerra civil (1936-39) e do franquismo (1939-1975) ali inumadas, segundo os números oficiais, mas que se crê ascenderem a mais de 50 mil, muitas contra a vontade e à revelia das suas famílias.

As primeiras 31 famílias já autorizadas a fazê-lo aguardam, impacientes, a ordem para o início dos trabalhos, depois de terem passado todos os obstáculos judiciais que lhes foram postos especialmente pelo abade da comunidade beneditina do mosteiro, Santiago Cantera, o guardião da memória franquista.

O caso mais emblemático é o dos irmãos Lapeña, cuja exumação deveria ter começado em Abril de 2018, mas continua por resolver, mantendo dezenas de milhares de vítimas do franquismo no humilhante mausoléu do fascismo e impedindo o resgate pelos descendentes.

Agora, o Governo, acusado de paralisar o início concreto da exumação de vítimas do franquismo, assegura (notícia de hoje) estar a procurar uma data adequada para um encontro com as famílias para a discussão de um processo que a Moncloa diz ser “longo e exasperante”.


Vítimas dos dois lados

A exumação de restos mortais existentes em milhares de ossários, distribuídos pelas criptas das oito capelas da basílica – duas nas extremidades do transepto (capelas do Santo Sepulcro e do Santíssimo) e seis laterais ao longo da nave central, cada qual com vários pisos – será de uma enorme complexidade, desde logo quanto à identificação.

Segundo o relatório da Comissão de Especialistas constituída para ajudar a dar suporte à exumação de Franco e a definir o futuro do Valle dos Caídos, e dados oficiais do Ministério da Justiça, estão inumados ali os restos mortais de 33 847 pessoas, das quais 21 423 estão identificadas.

Não se sabe quantas das vítimas pertenciam ao “bando republicano” (socialistas, republicanos, comunistas, anarquistas e outros combatentes, mas também civis, do lado do Governo e da República) e quantas eram do “bando sublevado” (militares e falangistas) que desencadeou a guerra civil, a 18 de Julho de 1936.

O monumento faraónico idealizado por Franco e mandado construir no vale de Cuelgamuros, na serra de Guadarrama, por decreto de 1 de Abril de 1940, um ano após o fim da guerra civil, e cuja construção o próprio ditador dirigiu, foi idealizado para glorificação exclusiva dos vencedores. Não por acaso, na construção foi empregue mão-de-obra escrava constituída por milhares de prisioneiros de guerra.

O diploma definia-o como “o templo grandioso dos nossos mortos e no qual se rogue por séculos por todos os que caíram no caminho de Deus e da Pátria”, desígnio confirmado por outro decreto, de 23 de Agosto de 1957, que estabelece que o monumento era “destinado a perpetuar a memória dos Caídos na Cruzada da Libertação”.


Mistura forçada

Quando foi solenemente inaugurada, em 1 de Abril de 1959, assinalando os 20 anos do fim da guerra, a basílica albergava os corpos de 8 746 pessoas, presume-se que em grande parte franquistas, mas já comportando a desonrosa mistura de restos mortais de vencidos, furtados à revelia das famílias em quase meio milhar de valas comuns e sepulturas por quase toda a Espanha (excepto províncias da Corunha, Orense e Santa Cruz de Tenerife).

Essa mistura foi realmente forçada, para dar a ideia de “conciliação” e “abertura” do regime fascista espanhol exigida nomeadamente pelos Estados Unidos e por outros países ocidentais.

Ainda segundo o relatório da Comissão de Especialistas, só em 1959 foram inumados no Vale dos Caídos os restos de 11 329 pessoas, sucedendo-se mais trasladações em massa nos anos seguintes, mas reduzindo-se até 1975 – o ano da morte de Franco.

Terá sido o ditador o último sepultado no Valle dos Caídos, a 23 de Novembro de 1975? Não! Ainda na chamada “transição democrática” e já em plena democracia, pelo menos mais 306 pessoas foram depositadas nas sinistras criptas de Cuelgamuros, ainda segundo o relatório dos especialistas – uma em 1977, 304 em 1981 e uma 1983.

Foram, parece não haver dúvidas, trasladações pedidas ao mosteiro por familiares saudosistas do franquismo e que a democracia consentiu ou ignorou. Vários autores estranham o movimento extraordinário de restos mortais, em 1981, e não encontraram motivações claras, mas parece ser de admitir que os descendentes dos falangistas quiseram aconchegar os seus restos ao lado de Franco.


Os últimos inumados

Há pelo menos um caso em que essa motivação é bem manifesta – o do último inumado no Vale dos Caídos, em 1983: Juan Álvarez de Sisternes, alcalde de Vilafranca del Penedès, na província catalã de Barcelona durante a ditadura fascista de Miguel Primo de Rivera e fuzilado como sublevado por milicianos republicanos em 20 de Agosto de 1936.

Depois da vitória franquista, os seus restos mortais foram inumados num mausoléu de glorificação fascista no cemitério local e a praça onde se situava a casa da família recebeu o seu nome. Em 1980, as autoridades mudaram a toponímia para Praça da Constituição. Despeitada, a família pediu a trasladação dos restos para “junto de Franco”.

Há, no entanto, versões distintas, indicando que outras trasladações foram feitas pelo menos até 1993, ano em que, em 17 de Setembro, teria entrado no Vale dos Caídos, proveniente do cemitério de Sevilha, o que restava de um tal José Galán Mora, já Filipe González havia pedido para que cessassem esses enterros.

O autor dessa revelação, José Díaz Arriaza, que fez uma investigação aos registos daquele cemitério, sustenta terem sido feitas inumações no Valle dos Caídos em anos em que os livros de registo do mosteiro são omissos: 1978, 1982 e 1988.  

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