Luísa e Ana: dois nomes para a História da República

Pela primeira vez, os ecos noticiosos e os comentários das cerimónias oficiais das comemorações do aniversário da Implantação da República - este ano, o 102.º - estão longe de resumir-se ao conteúdo, ao "tom", à oportunidade, aos labirintos das secretas intencionalidades dos fraseados ou ao tacticismo retórico dos discursos da praxe - o do Presidente da República e o do presidente da Câmara Municipal de Lisboa.
Pela primeira vez, duas mulheres - e logo haveriam de ser mulheres, feminino é o ícone da República, na fragilidade das suas pessoas e no dramatismo dos seus gestos, uma que gritando o desespero da sua sobrevivência impossível, outra cantando a "Firmeza"* como protesto - interromperam sem-cerimónia o protocolo, nos momentos finais da alocução de Cavaco Silva, e retiraram o brilho formal do seu encerramento (suponho que faltou cantar o hino nacional).
Não consta que tivessem pessoalmente algo a ver uma com a outra, ou que tivessem concertado os gestos, irrompendo pela sala bem-comportada a fazer ouvir as suas vozes singelas. Luísa, 57 anos, quis que as mais altas individualidades percebessem o drama que não é apenas seu; Ana Maria (segundo retive), quis que percebêssemos todos a urgência da firmeza contra esta opressão travestida de austeridade.
Luísa e Ana Maria protagonizaram um momento-sinal carregado de simbolismo, que acrescenta aos sinais de revolta e não-resignação que vão crescendo e estão lavrando. Não há cerimónia, deslocação ou presença oficial de governante e do próprio Presidente da República que não seja "incomodada" ou "perturbada". Mostram que a resistência se faz também pela perturbação da "ordem estabelecida" e evidenciam os sentimentos de revolta que estão inflamando...

* Firmeza
(poema de João José Cochofel, música de Fernando Lopes Graça)

Sem frases de desânimo,
Nem complicações de alma,
Que o teu corpo agora fale,
Presente e seguro do que vale.

Pedra em que a vida se alicerça,
Argamassa e nervo,
Pega-lhe como um senhor
E nunca como um servo.

Não seja o travor das lágrimas
Capaz de embargar-te a voz;
Que a boca a sorrir não mate
Nos lábios o brado de combate.

Olha que a vida nos acena
Para além da luta.
Canta os sonhos com que esperas,
Que o espelho da vida nos escuta.


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