O macaco que sabe fazer notícias não fez o jornal "i"


O meu estimado amigo, investigador, professor universitário e ex-jornalista Rui Pereira costuma comentar, com muita graça e certo acerto, que “a técnica da notícia é uma coisa que qualquer macaco aprende em 15 minutos”, pois “Jornalismo é outra coisa”.

Socorro-me deste arrimo de memória a propósito de uma aventura editorial a que o jornal i (ainda é assim que se grafa?) pôs hoje corajosos ombros: a façanha de produzir “o primeiro jornal do mundo feito (quase) sem intervenção humana”. Assim mesmo. E o parêntesis é do i, não meu.

Dá-se o caso de o jornal, obra de 32 páginas, ter sido escrito - garante a editora - por um tal “ChatGTP”. A edição não insere qualquer nota editorial feita por gente que explique tamanho disparate em gasto de papel e sacrifício inútil de não sei quantas árvores. Mas...

Se o propósito era mostrar que, se alguém na empresa anda a pensar substituir jornalistas de carne e osso por essa coisa da inteligência artificial, tem nesta edição provas sobejas para desistir do intento, a missão foi alcançada.

Porque os textos, senhores, nem como exercícios escolares seriam sequer sofríveis. São pavorosos, impossíveis, sem qualquer margem para crédito.

Eu poderia transcrever aqui um ror de exemplos, mas o tempo falta-me e não há inteligência artificial que possa acudir-me nesta tarefa. Em todo o caso, direi que os textos demonstram a mais ampla indigência e a mais chapada parvoíce, lavrados no tom e com a escassez de vocabulário típicos de uma vulgar “redacção da Primavera”.

Para conferir algum crédito a esta prosa, concedo em dar dois simples exemplos.

Primeiro: o editorial – logo o Editorial, senhores, coisa de respeito desde que a Imprensa se move! – é uma amálgama incoerente e inconsequente de lugares-comuns a anos-luz de qualquer noção de actualidade. Da primeira à derradeira sílaba, o “editorialista” não faz a mais pálida ideia do que está a acontecer.

Segundo – e para não dizerem que sou suspeito quanto ao tema supra: o jogo entre o Sport Lisboa e Benfica e o Inter de Milão. O lead é uma desgraça de vulgaridades, para além da data errada. E o desenvolvimento da “notícia” é verdadeiramente hilariante (digo eu, que nada sei de futebol): o Benfica é “liderado pelo técnico Jorge Jesus (…) e ocupa a segunda posição na Liga Portuguesa”, situa.

Em conclusão: se o patronato esperava substituir jornalistas por uma máquina (ou um algoritmo), mais esperar muitíssimo tempo sentado enquanto faz as contas à decência de ordenados que deve pagar a jornalistas para fazerem o trabalho que só a jornalistas cabe fazer.

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