Fernando Valdez, o meu chato bom

Quando o telemóvel tocava e surgia no ecrã o número do Fernando Valdez, nem sempre o atendia de imediato. Acontecia geralmente porque, em função de afazeres ou constrangimentos de oportunidade, sabia que não poderia conceder-lhe o tempo de que necessitaríamos para conversar, nem obter para mim o prazer dessa conversa. De modo que, à melhor oportunidade, devolvia-lhe a chamada.

Às 08:36 de ontem, o telefone tocou. Estranhei a hora, porque, a menos que estivéssemos empenhados nalguma tarefa mais “urgente”, não era habitual. Por outro lado, estava de saída para compromissos com hora marcada, que não poderia cumprir se o atendesse. De modo que, mais uma vez, adiei.

Uns 20 minutos depois, o telefone tocou outra vez. No ecrã, um número desconhecido. Do outro lado, a notícia que me deixou agarrado ao chão, surpreso, chocado e muito triste: a morte tinha-nos roubado o Fernando Valdez. O Valdez, com uma saúde de ferro? Uma pneumonia traidora…

O Valdez era um homem bom e um homem bondoso, de uma cordialidade e um respeito pelos outros como não havia outro. Em três décadas de camaradagem, são raríssimas as vezes que em que tenha elevado a voz, já nos limites, quando, na exaltação de uma discussão mais acesa, o contender descaía para o destratar. Mesmo assim, nunca foi deselegante ou maltratou alguém. Nunca lhe ouvi um palavrão, sequer, mesmo em ocasiões em que era lícito descair um pouco para o vernáculo.

Limitava-se a defender-se, a esgrimir os seus argumentos, devagar, pausadamente, por vezes com as palavras um pouco imperceptíveis, sempre com a paciência proverbial a que nos habituou. Concedo, é verdade, que por vezes repisava excessivamente os temas e as abordagens que achava justas e necessárias, para que o compreendêssemos. Era um chato? Por vezes era, mas era um chato dos bons.

O Valdez era incapaz de uma traição. Era de uma lealdade à prova de bala e exigia-a também aos outros, assim como nunca se calou quando lhe parecia que algum de nós tivera uma atitude menos correcta em relação a um camarada, não descansando enquanto não conseguia contribuir para esclarecer situações dúbias. Era um zeloso da honra e da transparência.

Sei exactamente quando conheci o Fernando Valdez. Foi no congresso da UGT realizado em Braga em Fevereiro (4 a 7) de 1988, que ele cobria para a agência Lusa e eu para o entretanto extinto O Primeiro de Janeiro, curiosamente a um mês exacto de mudar-me para o Jornal de Notícias. Impressionou-me de imediato pela simplicidade de trato e pelos actos de camaradagem, na ajuda da identificação de dirigentes sindicais que eu não conhecia, nas dicas sobre as principais questões em discussão, na troca de apontamentos.

Poucos anos depois, as nossas vidas voltaram a cruzar-se, agora para uns bons 30 anos de camaradagem, em tarefas sindicais e políticas, que cimentaram uma estima e uma amizade que me são muito gratas.

Desde Junho de 1993, quando fomos eleitos pela primeira vez para os órgãos do Sindicato dos Jornalistas – e para a Direcção; o Valdez para o Conselho Geral – que estivemos sempre juntos nos combates sindicais. Embora ele só viesse a integrar a Direcção no mandato iniciado em 2010, trabalhámos desde cedo de forma muito estreita, não só porque era um activíssimo membro do Conselho Geral, mas sobretudo porque era um excelente membro do Conselho de Redacção da Lusa e também delegado sindical na empresa, tendo sido também representante do SJ no Conselho Fiscal do Cenjor – Centro Protocolar de Formação de Jornalistas.

Nas reuniões de negociação do Acordo de Empresa, era um negociador firme, por vezes duro, sem perder a cortesia e a lealdade. Nas jornadas por vezes intermináveis, aprendi muito com o Valdez sobre negociação colectiva e devo-lhe muito do que sei, embora deva muito mais ao Dr. Horácio Serra Pereira – o director dos serviços jurídicos do Sindicato e nosso mestre comum.

Nos plenários de Redacção e de empresa, o Valdez era um líder exemplar, persistente sem precisar de levantar a voz, esclarecedor e persuasivo sem necessitar de sobrepor-se aos seus camaradas. É verdade, por vezes era chato – mas era um chato bom. Sobretudo porque procurava sempre que as decisões expressassem o mais amplo consenso.

Em matéria de unidade dos jornalistas, se não foi o mais exemplar de todos nós, está definitivamente entre aqueles que mais se bateram por ela, sobretudo no que ela representava para a vitalidade e a sobrevivência do Sindicato. Sofria sinceramente com os ataques a esses princípios e repelia com veemência qualquer ideia de fraccionamento. Manteve esse desígnio até ao fim, também na preparação das eleições em que continuamos a participar depois de 2015. 

Vi-o pela última vez na Conferência Nacional do PCP, em Novembro, mas conversávamos, por telefone, com certa regularidade partilhando reflexões e ideias. Retenho, comovido, a recorrência da sua primeira preocupação: a minha saúde. Que estava antes de tudo, insistia. E nunca falhámos um Natal nem um Ano Novo com o habitual telefonema de boas-festas e a promessa de, à ceia, erguermos um copo à saúde do outro e da respectiva família.

No próximo Natal, e no próximo e no próximo…, levantarei o meu copo à memória do Valdez, o meu chato bom.

 

*

O corpo de Fernando Valdez poderá ser velado na Igreja São João de Deus, à Praça de Londres, a partir das 17 horas de sábado. O funeral sai às 11h15 de domingo para o Cemitério do Alto de São João.

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