A sombra negra de Franco (*)

De repente, uma notícia estival despertou do torpor e abandono de décadas a sepultura n.º 48 do cemitério municipal de Catabois, concelho de Ferrol, na cintura norte corunhesa. Até à “dica” da sua existência largada por um historiador, o jazigo de granito escuro da família Franco Bahamonde pasmava, encardido, na maior indiferença. Se os restos mortais do ditador Francisco Franco forem exumados do Vale dos Caídos, irão mesmo para ali? É provável que não. Mas o certo é que a sombra negra do caudilho de Espanha paira ainda sobre o sofrido rincão galego.

Dá-se o caso de o Governo espanhol ter decidido remover os restos mortais de Franco da basílica do Vale dos Caídos, monumento faraónico erigido sob a orientação pessoal do Generalíssimo para glorificação dos vencedores da guerra civil de Espanha (1936-39), na vertente da Serra de Guadalajara nos domínios do Mosteiro do Escorial.

A polémica instalou-se e promete querela dura. Os descendentes do caudilho, cuja memória ensombra com centenas de milhares de mortos, torturados, presos e fuzilados que, adicionados aos perseguidos, somam uns três milhões de “represaliados” durante quatro décadas, brandem a Constituição democrática: não há exumação possível para os restos do “salvador da invasão maçónica e vermelha”. Mas, se houver...

No início de julho, “El Correo Gallego” prantou a notícia: afinal, a família Franco possui um túmulo em Ferrol, a cidade-natal do Generalíssimo. Estupefação geral. “Nem os eleitos nem os funcionários do concelho sabiam da sua existência”, assegura o alcalde (presidente da câmara), Jorge Suárez.

Neófito em matéria de assédio jornalístico, um cantoneiro do cemitério foge com enfado à pergunta sobre quem cuida do túmulo. “Ninguém”, diz, apontando a campa de granito negro, que hibernara, décadas a fio, sem um suspiro de atenção, o menor zelo de uma limpeza, muito menos de polimento das letras de latão que identificam na laje o clã esquecido: “Família Franco Bahamonde – DEP”.

Sabe-se que estão ali os avós, uma tia e uma irmã falecida ainda criança, coisa de quatro anos, trasladados, como os demais defuntos que foram inaugurar o novo campo santo municipal, nos idos de 1945, do antigo cemitério de Canido de funesta memória.

Com a notícia, acorreu talvez um anónimo a prantar letras de latão, luzidias de novas, onde faltavam os carateres F de “Franco” e BA e E de “Bahamonde”, a assinalar com pagelas de figuras da sua devoção uma veneração por uma figura afinal ausente e a tentar encaixar pedaços de pedra em falta nas laterais, com recurso ingénuo a quantidades generosas, mas precárias, de fita-cola.

 

Alarme no “Concello”

Mausoléu dos Franco no cemitério de Mingorrubio, em El Pardo, onde o ditador acabou por ser finalmente inumado, em 24 de Outubro de 2019  

Soaram os alarmes no concelho de Ferrol. Com o alcalde na dianteira, tomaram-se decisões drásticas. Que a cidade não aceitará receber os restos mortais do ditador para “não a transformar em centro de peregrinação de franquistas e neofascistas, que os há em crescente número”, explica Jorge Suárez.

Depois, que o município retirará à família privilégio do túmulo “oferecido” a Franco em 1967, por falta de legitimidade democrática. Coisa diferente será se os descendentes tratarem de adquirir uma nova campa. “Não podemos negar a ninguém o direito de enterrar alguém num cemitério público”, destaca o alcalde, cansado da polémica que ali chegou como “dano colateral”.

Por muito que desagrade ter as ossadas do ditador no seu território, desde que a família trate da campa e cumpra os seus deveres como qualquer cidadão, Ferrol “não quer cair no mesmo jogo ideológico da extrema-direita e negar direitos elementares”.

A polémica, porém, parece-lhe inútil. “Estou certo de que não o vão trasladar para aqui, não há qualquer interesse dos familiares por Ferrol, não têm nada a ver com a cidade, nem cá vêm.” O próprio Franco ia raras vezes e a mulher frequentava mais os antiquários e as joalharias, saindo sem pagar as contas, que iam parar ao Ayuntamiento. Até que em 1959, conta o historiador Enrique Barrera, o alcalde Francisco Dopico remeteu as faturas para Madrid. Na volta do correio, foi dispensado.

“Alguém acha que trariam o Franco para um túmulo modesto em Ferrol, quando tem em Madrid um panteão da família, onde está a mulher?”, questiona Barrera, dirigente da Associação da Memória Histórica Democrática de Ferrol.

De facto, Carmen Polo e a única filha, Carmen Franco, jazem na vistosa capela do cemitério de Mingorrubio, próximo do Palácio do Pardo que foi a residência oficial do caudilho, na vizinhança de defuntas figuras gradas do franquismo, como o almirante Luis Carrero Blanco.

 

A casa-natal e os curiosos

Casa onde nasceu o ditador, em Ferrol, em 4 de Dezembro de 1892

Não fora pelas ostensivas placas de bronze que assinalam, na fachada, a memória dos feitos do “salvador de Espanha”, e o número 136 da Rua Maria, no bairro da Madalena, em Ferrol, passaria despercebido.

Foi ali que, a 4 de dezembro de 1892, veio ao mundo Francisco Franco Bahamonde, no seio de uma família da elite militar local (o pai era oficial de Marinha) que se reclamava de fidalga por parentesco com a condessa de Pardo Bázan.

Dali sairia em jovem para formar-se (com baixa graduação, o 251.º entre 310 cadetes) como oficial de Infantaria na Academia de Toledo, já que a Escola Naval, para sua eterna frustração, estava encerrada. Subiu rapidamente na carreira por feitos de armas e simpatias ultradireitistas, integrou o núcleo golpista de 18 de julho de 1936 e veio a comandar o “bando nacional”.

Com a vitória, em 1939, tornou-se chefe do Estado, generalíssimo de todos os exércitos e caudilho de Espanha, governando-a brutalmente até novembro de 1975.

Manda a Lei da Memória Histórica (2007) retirar dos espaços públicos os símbolos do franquismo, dos vencedores da guerra civil e da ditadura. Em Ferrol, para além do escudo que pontifica na fachada da antiga alfândega, teimam estas placas. “Já instámos a família a retirá-las, mas não podemos obrigá-la nem retirar coercivamente porque é um lugar privado”, lastima Jorge Suárez.

A casa é um dos imóveis da herança bilionária que gerem os netos, mas queda-se silenciosa e fechada. “Não há visitas, mas gostava”, diz uma comerciante vizinha, pedindo omissão de nome e foto. “Não, tampouco há peregrinações de aficionados”, assegura. “Há quem pare a fazer fotos, simples turistas”, concede em dizer sumariamente o homem do bar próximo, pano vigoroso no balcão, a sacudir perguntas incómodas.

“São curiosos!, é mera curiosidade”, assevera Luis Puir, professor de matemática. Relativiza a polémica dos restos mortais: “É história passada. É um problema artificial que o colocaram os políticos, não está na rua! Os ossos são dos mortos, há que deixá-los.” E as placas, devem ser retiradas? “Não. A História é o que é; podemos retirá-las, mas está nos livros!”

Procura-se Franco nas livrarias? “Sim, especialmente turistas que veem a casa e perguntam por obras.” Alberto Justo, gerente da maior livraria da cidade, acede a mostrar os títulos disponíveis – diversificados em temas e ângulos – cujas vendas anuais não chegam à centena. Faz questão de dizer: “O facto de termos livros sobre Franco não significa que sejamos franquistas.”

 

Um muro com memória

Pormenor do muro se suporte do antigo cemitério de Canido, que serviu de parede para inúmeros fuzilamentos

Quem desce a Rua Maria, topa com uma pequena placa, luzente da inauguração recente, na Rua de Rubalcava que com ela faz esquina. É uma memória do Concelho a Pedro Guimarey Filgueiras, “escritor, jornalista e político galego, assassinado, pela sua condição de democrata republicano, em 20 de setembro de 1936”, numa “homenagem do povo de Ferrol às pessoas que perderam a sua vida na defesa das liberdades e da legalidade vigente”.

Na Rua dos Navegantes, bairro de Canido, num muro lúgubre, coalhado de musgos e plantas daninhas, pende de uma placa de mármore um ramo de flores envelhecido. Na placa, lê-se: “Em lembrança das pessoas que pela defesa da liberdade e da legalidade republicana foram vítimas da repressão franquista 1936-1976 – ano da Memória de 2006.”

Fernando Ocampo, da Associação da Memória Histórica, aponta: era o muro dos fuzilamentos, por sinal o muro de suporte do cemitério de então. Só em Ferrol, estima Enrique Barrera, foram assassinadas 700 pessoas – metade marinheiros e suboficiais da esquadra que permaneceu na base naval fiel ao Governo republicano legítimo; outra metade, socialistas, comunistas, sindicalistas e anarquistas e outros republicanos, como Pedro Guimarey.

Uns foram fuzilados nos dias imediatos à tomada de Ferrol pelos golpistas, que em escassos dias subjugaram a Galiza, prenderam, torturaram e julgaram sumariamente em tribunais militares fantoche inúmeros republicanos; outros foram “passeados” – um eufemismo cínico para designar os presos convidados a “passear” por descampados ou bosques e ali abatidos.

Apesar de Ferrol ser a maior base naval espanhola (“Há cidades que possuem uma base, Ferrol é uma base que tem uma cidade”, comenta Barrera) e de ali haver marinheiros leais à República, a guarnição era escassa. A maior parte da frota zarpara para Gibraltar a tentar evitar a passagem do estreito pelas tropas franquistas e mesmo assim a acabou por bandear-se para os sublevados.

Na doca seca, ficou o cruzador Almirante Cervera, inoperacional e impedido de sair com o boicote do dique pelos atacantes, muitos deles de outras unidades militares da cidade, incluindo de artilharia. Ancorado, estava um couraçado mas sem peças de artilharia. Em dois dias, Ferrol caiu.

A repressão e a mortandade que se seguiram foram brutais. As celas do Castelo de S. Filipe – o maior do conjunto de fortificações que protegiam a entrada na Ria de Ferrol – encheu-se de encarcerados às centenas. Foi preciso criar barcos-prisão na enseada.

Seguiram-se os fuzilamentos em série, no muro de Canido e no castelo. Só na comarca de Ferrol terão sido assassinados mais de mil, entre 1936 e 1976, de entre um total de quatro mil fuzilados, “passeados”, presos e perseguidos pelo franquismo.

No cemitério de Serantes, estreitas campas coletivas de executados assinalados por fieiras de pequenas cruzes testemunham o extermínio sistemático. Há datas que se replicam nas placas: 16 de setembro de 1936…

Túmulo de Amada Harcia, uma mártir da resistência antifascista galega

Destaca-se um jazigo em pedra escura, em cuja cabeceira rebrilha um nome: Amada Garcia. Presa com uns 40 e tal resistentes, foi levada para o Castelo de S. Filipe. Estando grávida, concederam-lhe que desse à luz e amamentasse o filho durante algumas semanas. Fuzilaram-na a 21 de janeiro de 1938, com mais sete companheiros, entre as muralhas do forte.

Mal o castelo deixou de ser militar e se tornou acessível ao público, nos anos 1990, começaram a surgir ramos de flores no local de assassinato, levadas regularmente pelo filho. Desde 2014, jaz na mesma campa, com legenda destacada: “Gabriel – filho de Amada Garcia”. 

É no castelo que a Associação Memória Histórica Democrática de Ferrel propõe um centro de interpretação, que mostre os cárceres, ofereça uma biblioteca, um arquivo documental, exposições e conferências. O projeto, diz o alcalde, está a ser preparado. A prioridade é a instalação de um memorial no Bairro do Canido, com os mais de mil nomes de assassinados pelo franquismo.  

 

Um paço em disputa

Visitas ao Paço de Meirás servem para enaltecer o caudilho

No Paço de Meirás, propriedade que a família de Franco diz ser sua e que o Parlamento Galego e o concelho de Sada (deliberações aprovadas por unanimidade) querem entregues ao Estado com urgência, não há uma menção às vítimas do franquismo.

“Está claramente provado que foi residência oficial do chefe de Estado, que ali recebeu outros chefes de Estado, concedeu audiências e presidiu a concelhos de ministros, assim como a escritura de compra e venda em 1941, tornando Franco, pessoa física, seu proprietário, é ilegal”, diz o alcalde de Sada, Benito Portela.

Concelho e Parlamento correm contra o tempo, agora para impedir a família de especular (colocou-o à venda por oito milhões logo que as autoridades exigiram a posse pelo Estado) e Benito apela à ação urgente do Governo nos tribunais. Para que fim? “No Plano Especial de Património de Sada, está como memória às vítimas do franquismo. Se foi o epicentro do franquismo na Galiza, tem de ser o epicentro da recuperação da memória”.

O Paço, mandado construir no século XIX pela escritora galega Emília Pardo Bazán, e “oferecido” pela Junta Provincial de A Corunha, em 1938, ao Generalíssimo, à força de fundos próprios e doações coercivas de funcionários públicos e comerciantes numa “subscrição pública”, é toda uma exaltação do caudilho.

Obrigada a abrir ao público todas as sextas-feiras de manhã as “Torres de Meirás” – classificadas imóvel de interesse cultural – a família Franco, que por ali costuma veranear, permite visitas apenas aos jardins, à capela (onde estão guardadas duas preciosas estátuas subtraídas a uma fachada da catedral de Santiago de Compostela), ao vasto hall de entrada, a duas salas e à biblioteca.

Franco está omnipresente – na coleção de preciosas antiguidades e achados arqueológicos que lhe foram “oferecidos”; na evocação dos seus atos oficiais; no busto que pontifica nas escadas de acesso à área privada; nos retratos que dominam o mezanino; ou no impressionante quadro em lugar de destaque na biblioteca, representando-o montado a cavalo a saudar as forças de partida de Marrocos.

Uma presença excessiva? “É uma parte da nossa História”, desvaloriza Pablo Lava, 56 anos, professor universitário, que acaba de fazer a visita com a família e sai impressionado com a biblioteca – “um paraíso muito acolhedor”. Que diz do quadro? “É uma questão histórica, simplesmente.”

Esforça-se num discurso neutral, mas encaminha a conversa para acusar a esquerda de “usar o franquismo como etiqueta” contra outros, criticar a Lei da Memória Histórica e deplorar a intenção do Governo de criar uma Comissão da Verdade: “Que medo!, não aceito que queiram estabelecer uma verdade política!”

Assim como duvida dos monumentos às vítimas do franquismo. “Só se tiverem dos dois lados...” Para Enrique Barrera, “há uma clara assimetria, quantitativa e qualitativa, na repressão franquista e republicana. Os franquistas assassinaram entre 225 mil e 250 mil pessoas (100 mil permanecem enterradas nas valas), os republicanos aproximadamente 40 mil. Mas, enquanto as autoridades republicanas tentaram conter os seus partidários, os militares franquistas enquadraram e encorajaram os seus”.

 

Romance do Comandante Moreno

Joaquim Victor mostra o local onde se situaria a vala comum em que o comandante Moreno esteve enterrado 

“Falanges de Fonsagrada / não podereis subir ao céu / porque ali está de porteiro / o comandante Moreno”. Em Fonsagrada, o folclore popular cristalizou a memória do fim trágico do célebre Batalhão Galiza e do seu comandante Moreno, cujos restos mortais e os de outros 15 companheiros foram exumados em 2007 e 2008 de três valas – entre as milhares que ainda hoje juncam Espanha.

Graças ao “Romance do Comandante Moreno”, que “até dava pistas onde tudo aconteceu”, recorda Joaquim Victor, 67 anos, pintor e ilustrador colaborador da Associação para a Recuperação da Memória Histórica (ARMH), foi possível alertar para o risco de soterramento do local onde ficavam três valas comuns, com o projetado alargamento da estrada nacional da Galiza para as Astúrias, e promover a exumação.

Tendo a frente republicana nas Astúrias soçobrado, a 21 de outubro de 1937, ante a força esmagadora das forças franquistas, o Batalhão Galiza bateu em retirada e dispersou-se, recorda Joaquim. “Na noite de 28 para 29, o comandante Moreno, outros do seu estado-maior e vários companheiros, um grupo de 16, que vinham exaustos”, acobertaram-se em duas pequenas estalagens na beira da estrada, no lugar do Acebo. Mas foram denunciados. “Os do povo do Acebo / fingindo ser esquerdistas / foram a Fonsagrada / dar conta aos falangistas”, conta a balada.

Cercados por guardas-civis e falangistas, foram abatidos, mas José Moreno fugiu. Capturado dias depois, sofreu longas torturas e “acabou abatido amarrado a uma argola”. Os corpos foram levados num carro de bois para a berma da estrada, já nas Astúrias (“oficialmente, na Galiza não havia frente de guerra”, observa) e lançados para três valas abertas por homens e adolescentes dos arredores.

Os restos mortais jazem num túmulo comum no cemitério de Fonsagrada, em cuja cabeceira está gravado um verso do poeta galego Ramon Cabanillas: “A liberdade nunca perdeu nenhuma luta!”

No cemitério de Fonsagrada, tumulo comum do comandante Moreno e dos seus companheiros de retirada após a derrota do Batalhão Galiza


 

(*) Texto da reportagem publicada originalmente na edição de 9 de Setembro de 2018 da revista Notícias Magazine, suplemento dominical do Jornal de Notícias. Publica-se agora neste espaço dada a curiosidade gerada pela nota anterior, sobre o 10 de Março em Ferrol. As fotos que aqui acompanham o texto são meros apontamentos de imagem auxiliares da memória tomados pelo autor. 

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