Marega também joga na Palestina e na Venezuela e no Iémen…



Há uma semana, um jogador de futebol, Moussa Marega de seu nome, abandonou um importante jogo em protesto contra os insuportáveis insultos racistas com que uma horda de adeptos da equipa adversária o visava desde o início do aquecimento antes da partida.

O caso deu brado, no país e no estrangeiro, impulsionado pela indignação de inúmeros cidadãos e da própria Imprensa, que se multiplicou em comentários e editoriais, além de primeiras páginas comprometidas e interpeladoras, convergindo na inequívoca condenação do comportamento indigno e intolerável dos espectadores.

O “incidente” convocou também debates de naturezas várias, sobretudo nos media, acerca de como conter a onda de racismo e de xenofobia que se apropria do território desportivo e do espaço público em geral, já com afloramentos visíveis e violentos, inclusivamente por parte de elementos de forças policiais, isto é, trazendo ostensivamente à luz do dia o que parecia apenas larvar – e já não era pouco.

Não tardou a contra-resposta, através de estratégias discursivas tendentes a fazer aceitar e até a fazer valer a normalização execrável ao ódio ao outro – apenas porque é de cor diferente, se veste de modo distinto e está (ou coloca-se…) à margem dos padrões que alguém decidiu como sendo aqueles que devem reger-nos.

Das caixas de comentários nos jornais em linha às redes sociais, das conversas de café à intervenção política, não faltaram tentativas, algumas delas com muitos apoiantes, de conformar uma atitude condescendente, de resistir à repulsa que o caso justifica e de silenciar os gritos de protesto. Ao contrário do que quiseram fazer crer, não se trata de um caso isolado.


Relativismo moral

Um dos elementos mais inquietantes no conteúdo das diferentes manifestações de opinião é o relativismo moral com que se encara estas manifestações de ódio racista, produto porventura de um caldo secular de cultura e de desprezo pelas “raças” subjugadas ao longo de séculos de colonização, esbulho, escravidão e exploração.

Dir-se-ia que nos está na massa do sangue, por muito que este, como se sabe hoje muito bem, se encontre “contaminado” pelos genes da negritude ancestral da espécie humana.

Talvez não seja por acaso que muitos pronunciamentos sobre o tema procurem esquivar-se à análise das questões de fundo. Como a de saber de que modo seremos capazes de ultrapassar preconceitos e atavismos, mesmo quando situamos o acontecimento num campo – pelos vistos especial, de manifestação tribal frequente e aceitavelmente irracional – onde os excessos de linguagem são toleráveis à luz de um estranho quadro extra-mormativo, isto é, estranho e à margem de qualquer ordem moral e jurídica.

Por outras palavras, é como se o espectáculo de futebol e as adjacentes manifestações de bancada fossem acontecimentos com estatuto de excepção, uma espécie de hiato na organização da vida em sociedade, assim desprovida de normas.

Uma expressão muito nítida dessa condescendência está na candura autodesculpabilizatória com que alguns procuram relativizar a gravidade de comportamentos racistas, tentando perscrutar alguma ínfima justificação que seja e lançando mão da estafada fórmula adversativa, frequente escapatória para as consciências menos tranquilas – “eu não sou racista, MAS ele também provocou, ele fez e aconteceu…”

Foi assim que um deputado fascista ganhou mais uma oportunidade de exposição mediática, ao cunhar de hipócrita este mundo e o outro, reproduzido até à náusea e dando largas, mais uma vez, ao racismo latente no subconsciente de muitos de nós, no qual repousam, prontos a reagir ao impulso certo, os instintos primários de sobrevivência face ao outro, ao estranho – seja o negro que desfere o golo da nossa derrota irremediável, seja o estrangeiro que disputa os parcos rendimentos da nossa pobreza…

Sem nos darmos conta, talvez exista uma molécula, oculta e dormente, disponível para reagir a narrativas e estímulos aos quais supúnhamos imune o nosso sistema de valores, que assenta em inquestionáveis aquisições científicas que derrogam o próprio conceito de raça e tornam anacrónicas e ridículas as exaltações supremacistas e os artifícios para tentar legitimar o discurso racista de que a literatura, a historiografia e a “tradição” são repositórios.

São essas aquisições científicas e a sedimentação das normas morais e jurídicas que determinam, de forma já irrevogável, numa sociedade estruturada em valores e em regras da convivência entre iguais, que condutas que discriminam, apoucam, humilham e insultam o outro, em função da cor da pele ou da ascendência devem ser qualificadas como crime.


Falta de cultura crítica

Em última análise, o que está em causa é uma questão de mentalidade e de cultura, individual e colectiva, em relação ao respeito pelo outro – pelo estrangeiro, pela pessoa de tez mais ou menos pigmentada, pelo diferente, pelo que pensa de forma distinta, pelo que professa uma crença diversa.

É ela que define muito em que medida o modo como cada um de nós encara e escrutina o desempenho dos poderes, também no que diz respeito às nossas relações como nação com os outros povos e com as outras nações.

Há, na realidade, uma indiferença generalizada dos cidadãos, para além de uma gritante ausência de cultura crítica, pelos “conflitos” relativamente a situações de opressão e subjugação – ou tentativa de – de outros povos, senão mesmo uma disponibilidade acrítica para aceitar como naturais e legítimas certas posições e actos dos governos, das elites e do capitalismo sobre povos e regiões que continuam hoje sob fogo real e a metralha da chantagem económica.

Talvez andemos todos demasiado ocupados com problemas certamente não pequenos das nossas importantes vidas, ou julguemos que as questões da geopolítica transcendem o nosso entendimento, ou estão para além da nosso compromisso cívico.

Mas é forçoso tomarmos consciência de que, de certa maneira, a banalização do ódio, e do desprezo, mas também a indiferença pelo outro, explicam muita da tolerância e do silêncio para com a violência organizada e para com as agressões de uns estados contra outros.

Assim como a falta ou a insuficiência de juízo crítico, face às situações de ingerência e até de agressão de estados estrangeiros e organizações militares na vida e na organização de estados e povos soberanos, pode constituir uma forma de cumplicidade dos próprios cidadãos em relação à acção e à omissão dos seus governos.

Custa ver como muitos de nós permanecemos indiferentes perante o cortejo quotidiano de acontecimentos violentos, de violentação da autonomia dos povos e de escandalosa coacção económica sobre nações inteiras, muitas sujeitas a uma prolongada história de dominação e ingerência.


Pela paz, todos não somos demais

Muita da arquitectura do Mundo é o resultado de séculos e séculos de sucessivas tensões e guerras, alianças transitórias e instrumentais, rupturas tácticas, paz de circunstância, disputas territoriais e pugnas por recursos naturais e riquezas de toda a espécie tão acirradas e tão violentas que parecem relativizar facilmente valores que críamos indestrutíveis – o direito à vida, o direito dos povos à autonomia e à paz...

Em pleno século XXI, deveríamos ter já aprendido da História, com os pesados custos materiais e sobretudo o inominável sofrimento imposto a milhões e milhões de seres humanos, que é urgente um caminho comum de paz, de cooperação, e de prosperidade partilhada entre os povos – de igual para igual.

Do Iémen, onde a flageladora intervenção armada das petromonarquias sauditas apoiadas pelo Estados Unidos, pelo Reino Unido e pela França, privaram mais de metade da população de alimentos e onde grassa a pior fome dos últimos 100 anos, à Síria, onde nove anos de guerra, instigada, alimentada e armada por poderosas potências (Estados Unidos, França, Turquia, etc., etc.) misturando extremismo jiadista com o propósito declarado de derrubar um governo legítimo destruíram um país inteiro, passando pelo Iraque, pelo Afeganistão (duas décadas de intervenção dos EUA e da NATO) e pela Líbia, estados falidos onde as intervenções militares estrangeiras levaram a devastação e impuseram sofrimentos atrozes, são angustiantes as notícias de prolongadíssimo adiamento da paz.

Da Palestina ocupada e violentada persistentemente por tropas israelitas, onde um pretenso plano de paz apresentado há poucas semanas aprofundará ainda mais a ignomínia perante a quase indiferença e passividade internacionais, ao acosso a estados soberanos e independentes como o Irão ou a Venezuela, a braços com sucessivas sanções ostensivamente destinadas a asfixiar as suas economias com poderosos impactes nas condições de vida dos seus povos, passando pela militarização crescente nomeadamente da chamada fronteira Leste da Europa, são muito preocupantes as notícias de uma instabilidade à escala planetária.

A corrida armamentista global, mas em particular no âmbito dos países da NATO, que se obrigaram a investir em defesa pelo menos 2% dos respectivos orçamentos nacionais, a persistência de arsenais nucleares com elevadíssima capacidade destrutiva, baseados em meios cada vez mais poderosos de propulsão capazes de atingir enormes distâncias, assim como a militarização do espaço constituem sérias preocupações com as quais a Humanidade não pode viver tranquila.

Todo este quadro – aparentemente com escassa relação entre um jogador de futebol insultado, ou um negro agredido num bairro com as complexidades da geopolítica – exige de todos nós uma atitude de vigilância ativa e de acção permanente, nas nossas organizações e oportunidades de intervenção.

Porque, como muito bem desafia a consigna do Conselho Português para a Paz e a Cooperação – “Pela paz, todos não somos demais”!

(Intervenção no Almoço da Paz promovido hoje, no Porto, pelo Conselho Português para a Paz e a Cooperação)
.

Mensagens populares deste blogue

Jornalismo: 43 anos e depois

O serviço público de televisão e a destruição da barragem de Kakhovka: mais rigor, s.f.f.

O caso Rubiales/Jenni Hermoso: Era simples, não é?