Eutanásia: Sim, os deputados é que têm a legitimidade para decidir
O
Fórum TSF de ontem foi dedicado à eutanásia. A primeira pergunta no lançamento do convite à participação dos ouvintes neste programa de debate em antena aberta e
em directo era intrigante: “Aceita o argumento de que os deputados não têm
legitimidade moral para decidir?”
Parecia
uma provocação antidemocrática. Mas remetia para uma afirmação do bispo
católico do Porto, numa entrevista ao jornal Público, dada à estampa em 24 de Dezembro último (acesso reservado
a assinantes), na qual Manuel Linda afirmava que, tendo legitimidade jurídica,
falta aos eleitos na Assembleia da República legitimidade social para legislar
sobre a eutanásia.
A
questão tem a ver com o debate que regressou em força ao espaço público, com o
agendamento, para o próximo dia 20, dos projetos de lei para a despenalização
da eutanásia, apresentados pelo Bloco de Esquerda
(BE), pelo partido Pessoas, Animais e Natureza (PAN), pelo Partido Socialista
(PS), pelo Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV) e pelo partido Iniciativa Liberal
(IL).
Por
causa desse agendamento, um conjunto de pessoas – algumas delas de destaque
presente ou recente na vida portuguesa, como os ex-presidentes da República
Ramalho Eanes e Cavaco Silva –, sob a designação Movimento #simavida, está a
promover uma petição com vista a um referendo de iniciativa popular, na qual propõe a seguinte pergunta:
“Concorda que matar outra pessoa a seu pedido
ou ajudá-la a suicidar-se deve continuar a ser punível pela lei penal em
quaisquer circunstâncias?”
Embora
declare que “a vida não é referendável”, a hierarquia católica tem vindo a
incentivar abertamente a iniciativa e, ontem, a Conferência Episcopal
Portuguesa (CEP) declarou apoio expresso e formal ao referendo pretendido, além de
outras iniciativas em curso.
É
legítimo afirmar, como o fez o porta-voz da CEP,
que “a sociedade deve ser ouvida”. Mas a contribuição que iniciativas como
estas dão para o debate corre o risco de não ser a que melhor serve um
propósito de esclarecimento sério, tão desapaixonado e objectivo quanto
possível, ciente dos argumentos vários e inteiramente consciente das
consequências.
A
questão da eutanásia é uma matéria extraordinariamente complexa, tanto do ponto
de vista científico em múltiplas áreas do conhecimento, como política e como
humana. Toca as cordas mais profundas da intimidade de cada um de nós,
questiona o quadro de valores da pessoa e da colectividade e talvez ponha em
crise, para muitos, padrões éticos que acreditávamos robustos.
O
estado da arte sobre este assunto mostra que subsiste um défice de discussão no
espaço público e justifica que os decisores políticos escutem de forma
aprofundada os cidadãos, além de especialistas em múltiplas áreas, de forma a
tomarem decisões informadas e conscientes.
Mas
não autoriza uma precipitação e muito menos legitima a manipulação emocional dos
eleitores. Os direitos fundamentais são matéria demasiado séria para ficar ao
sabor desse exercício arriscado que, até pela forma linear da resposta – “Sim” ou
“Não” – imposta pela Constituição e pela Lei, resvala facilmente para o impulso
do que se contém dentro do esforço dialéctico.
Também
foi por isso que elegemos os deputados. Independentemente da opinião e da
convicção que tenhamos sobre o problema, concordemos no todo ou em parte com a
força política na qual votamos, são mais os perigos de um referendo cuja
responsabilidade se dilui na massa anónima dos votantes do que os de uma
decisão dos eleitos que podemos identificar a escrutinar.