Sobre as imagens de um acordo

Num registo de exultação quase infantil, mas remetendo para a importância do simbólico em política, como na vida privada, como na História, o chefe das negociações entre o Governo e o Partido Social Democrata, Eduardo Catroga, fez questão de mostrar aos jornalistas, ao final da manhã de hoje, na Assembleia da República, a fotografia, obtida por um discreto telemóvel (leia-se, sem o testemunho profissional de jornalistas, na privacidade da sua própria casa, onde decorreu a ronda final das negociações), do "momento histórico" - rigorosamente às 23:19, como fez questão de sublinhar várias vezes - em que ele e o ministro das Finanças, assinaram o acordo entre o Executivo e o PSD.
Com a devida vénia, copio do Expresso online a foto do momento em que Catroga exibe o telemóvel:

Com a devida vénia, reproduzo também a fotografia publicada no Publico on line, no que parece ser um aparente exclusivo do jornal, já que à hora a que consultei as edições electrónicas dos restantes, nenhum outro a exibia:

Ambos os momentos encerram significados e mensagens muito importantes, sobretudo se tivermos em conta que os protagonistas do caso acabaram por não participar em conjunto no momento de ritualização que chegou a estar preparado. O "Jornal da Tarde" da RTP mostrou aliás a sala, a mesa, as duas cadeiras, a bandeira nacional e a bandeira da União Europeia que serviriam de cenário à assinatura, esta manhã, na Assembleia da República, do referido acordo.
Como se fora um troféu, o negociador do PSD exibiu o telemóvel aos jornalistas para assinalar o "momento histórico" registado na privacidade da sua casa; escassíssimos minutos depois, falando também aos jornalistas, o negociador do Governo lamentou que o outro não quisesse uma "fotografia a dois" para mostrar ao país, isto é, registada em público.
Percebe-se que os dois atribuem valores e significados simbólicos ao registo para a posteridade, expresso em imagens, da celebração de um acordo que ambos reputam importante: um preferiu limitar-se ao ambiente privado, discreto, quase secreto do momento crucial do pacto; o outro preferiria manifestamente a sua ritualização pública.
As declarações que ambos proferiram e as opções de comunicação (distintas) protagonizadas pelos dois dizem também muita coisa:
  • Catroga enunciou os pontos essenciais do acordo e, numa gabarolice escusada ("já participei em milhares e milhares de negociações"), veio vangloriar-se de que "as metas essenciais do PSD, embora cedendo", foram alcançadas, designadamente quanto ao não agravamento fiscal para a maioria das famílias.
  • Teixeira dos Santos, mais contido e mais firme (o objectivo do défice em 2011 correspondente a 4,6% do PIB deve ser alcançado custe o que custar), veio dizer que o acordo "restaura a confiança dos mercados financeiros", mas alijou o ónus de custos de 500 milhões de euros para cima da contraparte do acordo - o PSD - e deixou claro que este não poderá deixar de ser cúmplice do PS da adopção de "medidas adicionais" na discussão do Orçamento na especialidade .
De facto, na Lei do Orçamento, como em muitas outras leis, é na discussão na especialidade, tantas vezes longe das câmaras e dos registos dos jornalistas, e sem que os jornalistas e os cidadãos se dêem ao trabalho de consultar as respectivas actas, que o Bloco Central se perpetua.
No fundo, no fundo, eles estão de acordo quanto ao essencial e o que acontece para jornalista ver é encenação - com ou sem "foto de família".
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