Caramulo: O poder da Família Lacerda dava um filme
A dominar uma das alamedas do
Parque Jerónimo Lacerda, em plena vila do Caramulo, pontifica, solene, o
busto do “ilustre médico” e “génio criador” que “forjou a ideia e realizou a
obra desta estância sanatorial”. O busto do Dr. Jerónimo Lacerda (Coimbra, 1889 - Lisboa, 1945) é um símbolo do poder que a família Lacerda
chegou a ter como poucas.
Da “Estância Sanatorial do
Caramulo”, pouco resta (tirando as vivendas e chalés) para além das ruínas de e
uns tantos antigos edifícios de galerias abertas para os ares da serra, onde,
entre os anos 1920 e 1970, os doentes com tuberculose desesperavam pela cura ou
aguardavam a morte, em arruinada memória dos tempos áureos em que a vila fervilhava
em duas dezenas de sanatórios com quase dois mil doentes e dezenas de médicos,
para além do pessoal necessário ao que, diz-se, foi uma mas mais importantes e
prestigiadas estâncias da Europa.
No interessante Museu Terras de
Besteiros – Museu Municipal de Tondela, pode ser visitada (há muito para ver,
de resto!) uma sala dedicada à estância, e especialmente aos tratamentos e às
cirurgias, assim como à evolução terapêutica que proporcionou condições muito
mais eficazes de cura e ditou o fim dos sanatórios.
Do Museu do Caramulo
Do que resta da antiga glória da
estância, deve mesmo visitar-se o Museu do Caramulo.
O edifício principal alberga um
importante e rico espólio, com peças de arte que preenchem um arco cronológico
diversificado – do Antigo Egipto a artistas modernos e contemporâneos, de Grão
Vasco a Picasso e Salvador Dali, de Amadeo de Souza-Cardoso a Maria Helena
Vieira da Silva. Há também faianças, mobiliário, brinquedos…
O segundo edifício, muito menos monumental
do que o primeiro, acomoda a famosa colecção de automóveis, motos e bicicletas
antigos, que faz as delícias dos apreciadores e dos turistas, mostrando exemplares
dos primeiros modelos a bólides famosos das corridas. Mas guarda também
preciosidades de enorme singularidade histórica.
Lá está o famoso Crysler Imperial,
de 1937, matrícula HE-10-32, um modelo blindado que serviu para transportar o
ditador António de Oliveira Salazar, opção da Polícia de Vigilância e Defesa do
Estado (PVDE) após o atentado nesse ano, mas, ironicamente, foi o meio usado na
espectacular fuga deoito importantes quadros do Partido Comunista Português (PCP), em 4 de Dezembrode 1961, da prisão de Caxias, onde nessa altura estava à guarda da Polícia
Internacional de Defesa do Estado (PIDE, ex-PVDE).
O Museu do Caramulo, fundado pelos irmãos Abel e João Lacerda, filhos de Jerónimo Lacerda, reflecte muito bem não só o poder económico da família Lacerda mas também – e sobretudo! – a sua influência e o seu poder na sociedade e no restrito círculo do poder fascista.
Um “íntimo” de Salazar e
legionário
O pai, que foi “íntimo” de
Salazar desde os anos 1930 (o ditador “deixou-se” retratar por Eduardo Malta na
casa dos Lacerda, onde era hóspede frequente) e ostensivo legionário (os
médicos sob a sua direcção eram vistos também com o uniforme da Legião
Portuguesa), impôs a muitos proprietários de muitos terrenos para a estância os
preços que entendeu, privou sucessivamente os outros accionistas da Sociedade
do Caramulo dos respectivos dividendos e afirmou-se na sociedade lisboeta e na
alta roda da finança e da política, na qual aliás angariava grande parte da
clientela doente.
Dos filhos, podemos destacar Abel Lacerda, que assumiu a direcção administrativa da estância após a morte do
pai, em 1945, assegurando a manutenção das rédeas do empreendimento na família,
tendo sido deputado à Assembleia Nacional e beneficiado bem das ligações no
regime.
No precioso espólio do Museu do
Caramulo, criado e mantido graças essencialmente a doações e patrocínios, constam
inúmeras peças doadas por pessoas gradas do círculo de Abel Lacerda, mas também
outras adquiridas empenhando os cabedais de grandes empresas com interesses
afins ao Estado, como as companhias de navegação, que pagaram aquisição, em Inglaterra,
das famosas tapeçarias de Tournai, que se crê terem sido encomendadas pelo rei
D. Manuel I (1495-1521) para assinalar a viagem do navegador Vasco da Gama à
Índia.
Memórias…
O irmão, João, também não
desperdiçou os benefícios de privar com as elites do poder e da finança, que a
família continuava a receber no Caramulo e que abrilhantavam também o “seu
museu automóvel”.
É tido como menos tolerante do
que João e até fez saber aos funcionários da estância que lhe desagradavam as manifestações
contra o regime e o apoio que também ali surgiu à candidatura do general
Humberto Delgado, apoiado pelos sectores oposicionistas. Alguns abandonaram o
Caramulo e não regressaram…
Nas diversas ocasiões em que
visitei e pernoitei no Caramulo, não tive oportunidade para estabelecer
contacto suficiente com residentes antigos da vila. Por isso, não sei se estará
certa a impressão que tenho de que escassas serão as boas memórias do passado e,
sobretudo, da família Lacerda.
Na mais recente visita, em meados deste mês, o mausoléu da família, erigido, à devida escala, à maneira de uma igreja românica no cemitério local, pareceu-me abandonado de zelos e cuidados. E continua a intrigar-me o facto de a Vila do Caramulo, apesar do prestígio e da grandeza de outrora, não passar, afinal, de um lugar da freguesia de Guardão.
*
Voltando ao busto do Dr. Jerónimo
de Lacerda: por alturas do 25 de Abril, chegou a estar fora do pedestal por uns
tempos, segundo narra o Dr. António José de Barros Veloso, numa
interessantíssima – e para mim muito proveitosa – monografia intitulada “Caramulo:
Ascensão e Queda de uma Estância de Tuberculosos”, cuja leitura aconselho
vivamente e que poderia muito bem servir de base de guião para um filme sobre o
poder da família Lacerda.