América Latina em retoma do ciclo progressista
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A mesa da sessão (foto gentilmente cedida pelo professor Henrique Borges) |
O Conselho Português para a Paz e a Cooperação (CPPC) realizou, na passada quarta-feira, 18, mais uma sessão de solidariedade com os povos da América Latina, na qual participei, com a presidente do CPPC, Ilda Figueiredo, e Sandra Tavares, jurista e professora universitária. As palavras que disse estão a seguir.
I - Saudação
Começo por agradecer o convite para participar
em mais esta iniciativa do Conselho Português para a Paz e a Cooperação – a única
organização a manter na ordem do dia a situação na América Latina.
Aliás, seria útil reflectir sobre as razões
pelas quais esse imenso território, tão rico, tão complexo, mas onde estão em
movimento importantes transformações, está em geral fora da agenda mediática
portuguesa…
Ou sobre o duplo critério “jornalístico” Venezuela
vs. Colômbia.
Ou o silenciamento em geral sobre o que
acontece em múltiplos países, mesmo onde há importantes comunidades portuguesas
(Argentina, para além do Brasil e da Venezuela)…
Um
exemplo do silenciamento são os acontecimentos na Colômbia, especialmente as
expressivas manifestações de milhares e milhares de colombianos contra as
políticas económicas e sociais do direitista ultra-liberal Iván Duque, que têm
sido duramente reprimidas.
Assim
como são silenciadas as campanhas sistemáticas de massacres levadas a cabo por
paramilitares sobre dezenas de pequenas populações e famílias indefesas –
geralmente indígenas – e os assassínios de dirigentes de movimentos e
organizações sociais e de ex-guerrilheiros das Forças Armadas Revolucionárias
da Colômbia (FARC).
Estima-se
que desde a assinatura do acordo de paz entre o ex-presidente Juan Manuel
Santos e o líder das FARC, Rodrigo
Londoño Echeverri (“Timochenko”), em Novembro de 2016, mais de um milhar
de dirigentes sociais foram assassinados. Só no primeiro semestre deste ano,
foram assassinados 95, mais 61% do que no mesmo período do ano passado.
Assinale-se também a falta de acompanhamento de
organizações regionais muito importantes, como a Mercosul e a Aliança
Bolivariana para os Povos da Nossa América (ALBA), assim como de escrutínio das
actividades da Organização de Estados Americanos (OEA), e em particular do seu
secretário geral, Luís Almagro, um criado à ordens de Washington.
II - Importantes acontecimentos em
curso
1. Perú - situação muito complexa e incerta: questão – de sucessivos governos corruptos de direita ou centro-direita neoliberais a um avanço dos sectores progressistas?
A
convulsão histórica da última semana:
Segunda-feira,
dia 9 – O Congresso destitui o presidente peruano, Martín Vizcarra, por
“incapacidade moral permanente”, uma figura constitucional ambígua: é suspeito
de ter recebido subornos de empreiteiros quando era governador de um pequeno
estado.
Note-se
que ele empunhava a bandeira da luta contra a corrupção e tinha substituído, em
2018, o presidente Pedro Pablo Kuczynski, acusado de… corrupção
Terça-feira,
dia 10 – O presidente do Congresso, Manuel Marino, assume a presidência
interina do Perú (há eleições presidenciais e legislativas marcadas para 11 de
Abril).
Irrompem
manifestações gigantescas nas ruas contra a destituição de Vizcarra –
considerado um presidente popular – e a usurpação de Marino. E sobretudo contra
a corrupção e a decadência do sistema, especialmente desde o regime de Alberto
Fujimori e da sua família. A imprensa progressista refere que mais de metade
dos deputados está sob acusações de corrupção.
Os
protestos levados a cabo por amplos sectores são fortemente reprimidos – há
pelo menos dois mortos, dezenas de feridos, e pelo menos dois desaparecidos.
Domingo,
dia 15 – O Congresso força Manuel Marino a renunciar ar cargo e elege, por
forte maioria (97 contra 27), o centrista Francisco Sagasti.
Num
contexto de grave crise pandémica de covid-19 (mais de 35 300 mortos, números
de hoje) e de crise inédita do regime político e institucional, analistas de
esquerda consideram estarmos em presença de uma rutura da ordem política e
mesmo que um imenso processo revolucionário está em marcha.
O
certo é que, apesar das juras de pacificação do novo presidente, prosseguem as
mobilizações – e para hoje mesmo está convocada uma mobilização pela
Confederação Geral dos Trabalhadores do Perú.
Há,
porém, muitas dúvidas e muitas incógnitas sobre que direcção tomará essa
“revolução”. Talvez só o saibamos com mais acerto em 11 de Abril do próximo
ano, quando se realizarem as eleições presidenciais e legislativas.
Mas poderá ser inevitável alterar a Constituição – um objectivo que a candidata de esquerda Verónika Mendonza colocou no fim-de-semana na ordem do dia, ao propor que nesse mesmo dia simultaneamente se referende a alteração à Lei Fundamental.
2. Chile: uma nova Constituição – que conquistas serão possíveis?
No
passado dia 25 de Outubro, as plataformas por uma nova Constituição no Chile
impuseram, em plebiscito, uma retumbante vitória, aprovando por 78,3% e elaboração
de uma nova Lei Fundamental, o que deve ser feito por uma Assembleia
Constituinte devidamente eleita para o efeito, segundo a vontade de 79% dos
eleitores.
Antes
de mais, trata-se de uma importante vitória popular, corolário da revolta de 18
de outubro do ano passado, saldada em mais de 30 mortos e milhares de feridos
pela brutal repressão policial e militar ordenada por Sebastian Piñera sobre
centenas de milhares de manifestantes.
Tudo
começara com um protesto contra o aumento dos preços dos transportes, da
electridade e do pão, mas os salários e pensões de miséria, a profunda
injustiça na distribuição da riqueza (25,6% da riqueza líquida do país estão
nas mãos dos 1% mais ricos) e a reivindicação de serviços públicos de saúde e educação
avolumaram a agenda reivindicativa popular.
Mas
rapidamente se impôs a alteração da Constituição – a redacção de um novo texto
– como condição fundamental para a reparação dos graves e longos danos de que a
maior parte da população sofre desde a ditadura fascista de Augusto Pinochet
(1973/1990).
De
facto, o resultado do plebiscito de Outubro traduz uma dupla ruptura:
-
Com a Constituição “herdada” da ditadura que os governos posteriores, mesmo os
democratas e até de perfil progressista, como o teria sido o de Michelle
Bachelet, não conseguiram reformar nos aspectos fundamentais, apesar de quatro
dezenas de alterações feitas desde 1978: e
-
Com o modelo social e económico neo-liberal imposto antes mesmo da redacção da
Constituição, em 1980, e que esta consagra, sufragando a violenta doutrina neoliberal
que logo após os primeiros anos da ditadura militar passou a ser a sua doutrina
oficial.
Não
esqueçamos que, com os chamados “Chicago Boys”, o Chile foi realmente o
laboratório mundial do neoliberalismo com a aplicação das teorias económicas da
Escola de Chicago, implementadas em força sobretudo entre 1978 e 1979, com a
privatização total ou parcial de todos os serviços – incluindo saúde e
segurança social – e a desregulação do trabalho.
A Constituição de 1980 limitou-se a
consagrar o chamado princípio do Estado subsidiário, em que a generalidade dos
serviços (água, eletricidade, educação, saúde e segurança social) é privada, ou
tem no Estado um mero papel complementar. O mercado e as suas leis absolutas
prevalecem de tal modo que a Constituição inibe o próprio Estado de desenvolver
actividades empresariais.
Entre
outras normas da Constituição ainda em vigor é a proibição da greve aos
funcionários do Estado, das autarquias e das empresas (privadas) prestadoras de
serviços de interesse público…
Ora, apesar da excelente notícia do amplo consenso nacional sobre a necessidade de redigir uma nova Constituição, cujos deputados constituintes serão eleitos em abril, é forçoso encarar o novo processo constituinte com muita precaução ou mesmo preocupação.
Em
primeiro lugar, porque será muito difícil conciliar os poderosos interesses das
elites e da burguesia que medraram no húmus do neoliberalismo (o próprio
Sebastian Piñera é um empresário que enriqueceu com Pinochet e sempre viveu
muito bem com o sistema) com a necessidade de pôr termo ao sistema que está na
origem das profundas desigualdades e assegurar o direito à saúde, à segurança
social e a salários justos.
Por
outro lado, há uma realidade que até agora esteve arredada da ordem do dia do
debate político, mas que a campanha para o plebiscito de Outubro colocou em grande
evidência: os direitos dos povos originários do Chile, especialmente o povo Mapuche,
que representam 12,5% da população, estão reduzidos à pobreza e sem verem
reconhecidos os seus direitos às suas culturas e tradições e ao seu território
próprio.
3. Bolívia – a República Plurinacional venceu
Na Bolívia, as eleições
presidenciais e gerais de 18 de Outubro, outorgaram ao Movimento para o
Socialismo (MAS) e ao seu candidato a presidente, Luis Arce, uma vitória
indiscutível (55,11%) sobre o candidato da direita e da extrema-direita, que,
um ano depois do golpe da extrema-direita e da OEA, e em particular do seu
secretário-geral, Luis Almagro, com a cumplicidade das chefias militares,
obrigou o presidente Evo Morales a renunciar ao cargo e a buscar exílio no
México – e depois na Argentina.
O seu objetivo foi evitar um
banho de sangue, e mesmo assim a violenta repressão exercida sobre os seus
apoiantes e activistas pela legalidade democrática deixou um rasto de pelo
menos 23 mortos e 715 feridos (dados de 17 de novembro de 2019), além de
dirigentes e eleitos do MAS agredidos, vendo sedes e até as suas casas
assaltadas e incendiadas.
Num clima de terror, a ultra-direitista
Jeanine Añez, segunda vice-presidente do Senado, supremacista conhecida pelo
seu desprezo para com os indígenas e mestiços (que representam 88% da
população) tomou de assalto o poder, autoproclamando-se presidente interina,
mas tomando decisões de titular de pleno direito, incluindo rompendo relações
com países amigos, como a Venezuela, e mandando perseguir Evo Morales.
Hoje, a Bolívia é novamente uma
República Plurinacional, com um governo progressista que vai continuar a
valorizar os seus recursos naturais – nomeadamente minérios estratégicos como o
lítio, que os usurpadores pretendiam entregar aos Estados Unidos – e está a
restabelecer as suas relações com países irmãos da região.
Mas não nos iludamos: permanecem
no país perigosas forças – inclusivamente paramilitares armados, acantonados
sobretudo em Santa Cruz (região rica) sob a liderança do empresário Fernando
Camacho – dispostas a subverter, à melhor oportunidade, a ordem democrática e a
travar a passada progressista que os bolivianos decidiram retomar.
4. Venezuela – a próxima prova
A década de 1990, com a chegada
ao poder de forças populares e progressistas lideradas por Hugo Chávez, na
Venezuela, Lula da Silva, no Brasil, Nestor Kirchner, na Argentina, e Evo
Morales, na Bolívia, inaugurou na América Latina um ciclo de ruptura com o
primado do neoliberialismo e da hegemonia dos Estados Unidos, criando as bases
para a integração regional e impondo nos fóruns internacionais uma visão e
objectivos próprios, contribuindo decisivamente para romper o desumano bloqueio
a Cuba, sobretudo com posições na ONU.
A Venezuela tem resistido aos
reveses – uns de natureza golpista, como no Brasil, com a destituição de Dilma
Rousseff, outros eleitorais, como na Argentina, com a desastrosa eleição do
neoliberal Maurício Macri, derrotado entretanto no ano passado, permitindo o
regresso de Buenos Aires ao ciclo progressista, com Alberto Fernández e
Cristina Kirchner.
Mas os Estados Unidos e a direita
regional e internacional – sobretudo a União Europeia, com Espanha à cabeça –
não lhe perdoam a resistência às duras provações económicas e financeiras e,
por conseguinte, também sociais, que resultam da sucessão cada vez mais
violenta de sanções económicas determinadas por Washington e por Bruxelas.
Washington e Bruxelas também não
perdoam a resistência da Venezuela às tentativas de golpe da ultradireita e em
particular a farsa da auto-proclamação do ainda presidente da Assembleia
Nacional, Juan Guaidó, largamente apoiado e financiado pelos Estados Unidos,
sobretudo na mira dos importantíssimos recursos petrolíferos, mas que se
revelou incapaz de cumprir a missão de que foi encarregado – a mudança de
regime.
Recordemos: Guaidó
autoproclamou-se presidente interino – ou de facto… – em 23 de janeiro de 2019,
imediatamente reconhecido pelos EUA, pela Comissão Europeia e por meia centena
de países, entre os quais o Governo português, com a UE a exigir a realização
de eleições num prazo de 90 dias. Nada aconteceu, apesar do “governo” de palha
e dos “embaixadores” de fazer de conta, que estão aliás numa situação ridícula,
porque quaisquer questões entre Estados só podem ser tratadas através dos
canais diplomáticos oficiais.
Para o dia 6 de Dezembro, estão
marcadas as eleições constitucionalmente previstas para a Assembleia Nacional, mas
que parte da direita está a boicotar, recusando comparecer ao sufrágio,
explicitamente apoiada pela União Europeia, que se recusa enviar observadores e
que acaba de prorrogar por mais um ano um conjunto de sanções, por considerar
que se mantêm “acções contra a democracia, Estado de direito e direitos
humanos”.
A nova ofensiva contra os
resultados já está em marcha: numa operação surpresa, evidentemente apoiada
pela Espanha, o dirigente opositor Leopoldo López (Vontade Popular), que estava
refugiado na embaixada espanhola em Caracas, chegou recentemente a Madrid com
uma missão muito especial: fazer com que a chamada comunidade internacional
faça manter em funções a Assembleia Nacional que em qualquer democracia é
substituída após eleições.
5. Estados Unidos e América Latina – e agora, Sr. Biden?
Não restam dúvidas de que a
Administração Trump levou à letra, exorbitando mesmo, a famosa “Doutrina
Monroe” (presidente James Monroe ao Congresso, em 2 de Dezembro de 1823) que
afirma a hegemonia dos Estados Unidos sobre toda a região, a tal ponto que tal
doutrina legitimou sucessivas intervenções (patrocinando golpes de estado e a
nomeação de presidentes-fantoches) e invasões em vários países da América
Latina e a ingerência directa nos seus governos, segundo a adaptação feita por
Theodore Roosevelt em 1904.
Um dos princípios da Dourina
Monroe, que Trump interpretou com agressividade, é o de que nenhuma potência
estrangeira pode intervir nos assuntos do Hemisfério Ocidental (leia-se
Continente Americano, as Américas) e de que as suas actividades comerciais são
uma ameaça aos seus interesses.
Por isso, para além da tentativa
de restabelecer a sua hegemonia e de hostilizar duramente a Venezuela e Cuba,
mas também a Bolívia, os Estados Unidos da era Trump fizeram tudo para
dificultar a influência da China na região, e especialmente as relações
comerciais e as parcerias de cooperação e desenvolvimento no âmbito da
iniciativa intercontinental Cinturão e Rota.
O que acontecerá agora, com Joe
Biden, o recém-eleito presidente?
Parece não haver dúvidas de que a
Administração Biden adoptará uma diplomacia mais polida e afastar-se-á em
certos aspectos da política externa de Donald Trump. Mas há um deles que não
poderemos deixar de ter em conta: republicanos e democratas partilham o
essencial da agenda de política externa, desde logo a sua afirmação de potência
líder mundial e a defesa dos seus “interesses vitais” (onde quer que seja, quer
dizer, arrogando-se o direito de defesa extraterritorial), nem que seja
necessário recorrer ao uso da força.
Aliás, Biden deixou isso muito
claro, bem recentemente, e o seu programa consagra-o em letra de forma, no qual
se lê que os EUA reforçarão e modernizarão mesmo a sua capacidade militar.
No que diz respeito à América
Latina, Biden deverá mudar em estilo e levantar nas medidas mais duras e
“desumanas” em relação à imigração e à política de fronteiras, mas o
neoliberalismo e a visão oficial de “democracia” que pretende para os países
permanecerão como eixos centrais da política externa americana.
Em relação a Cuba, é de esperar
que Biden levante as restrições às viagens, investimentos e transferência de
capitais que Trump impôs, contrariando a política de normalização da era Obama
(aliás por pressão de muitos empresários norte-americanos), e deve restaurar o
programa de reunificação familiar cubano.
Mas há dúvidas sobre se dará mais
passos – o principal dos quais só pode ser o fim do bloqueio, que dura há mais
de meio século e que os EUA teimosamente mantêm, contra a posição da quase
totalidade dos membros da Organização das Nações Unidas.
Fixemos três pontos importantes.
Primeiro: a liderança da região pelos EUA é um património comum a republicanos
e democratas; segundo: o bloqueio como instrumento de isolamento e tentativa de
esmagamento de Cuba é historicamente da responsabilidade partilhada de
republicanos e democratas; terceiro: do ponto de vista constitucional, o
democrata Bill Clinton caucionou em 1996 Lei da Liberdade e Democracia Cubanas,
a chamada Lei Helms-Burton (senadores republicanos) que agrava o bloqueio, lhe
dá um alcance extraterritorial (penalizando países e empresas que tenham relações
com Cuba) e blinda a sua revogação.
De facto, desde então não basta a
eventual vontade do Presidente dos EUA de revogar as normas do chamado embargo;
é necessária a aprovação pela via legislativa nas duas câmaras do Congresso. É
uma missão difícil devido à complexa correlação de forças (maioria democrata na
Câmara dos Representantes; maioria republicana no Senado). Mas nem Obama deu qualquer
sinal de pretender mudar realmente essa realidade, nem Joe Biden dá mostras de
querer fazê-lo.
Já em relação à Venezuela, a
imprensa americana vai dizendo que talvez Biden deixe de tratar Guaidó como
líder de facto do país e tratará de negociar com o presidente legítimo, Nicolás
Maduro. Veremos.
Muito obrigado pela vossa atenção.