Notícias da frente


Quase um ano depois do primeiro debate, a 8 de Março de 2019, sobre este mesmo tema, cujas intervenções estão reunidas nos Cadernos de Abril editados pela Associação Conquistas da Revolução, estamos de regresso a um assunto que ganha redobrada actualidade – e não pelas melhores razões[1].
Correndo o risco de maçar alguns, mas tendo ainda alguma esperança de contribuir para despertar de uma espécie de dormência cívica, na qual medra a indiferença pelo que vai ocorrendo em seu redor, com implicações seríssimas nas vidas de todos nós, é forçoso insistir num problema nodal para a qualidade do nosso viver comum a que gostamos de chamar democracia – o galopante défice de pluralismo informativo (e de opinião), mas também no entretenimento.

O estranho caso da super-concentração da Cofina
No penúltimo dia do ano transacto, a Autoridade da Concorrência (AdC) anunciou ter decidido não se opor à operação de concentração Cofina/Media Capital. Embora tenha concluído que “a entidade resultante da operação de concentração ficará com posições de relevo em vários mercados”, a AdC mostra uma aliás pouco surpreendente condescendência, ao dar de barato que, “porém, essas posições são prévias à operação de concentração”.
Isto é como quem diz que não vem mal nenhum nem ao mundo nem à democracia, nem às condições de trabalho e aos direitos dos jornalistas e de outros profissionais, nem ao direito dos cidadãos de acesso à informação – e ao entretenimento – verdadeiramente plural e realmente diversificada se juntarmos dois grupos que possuíam cada um a sua generosa quota de poder de influência no espaço público.
Pelo mesmo caminho tinham andado já, alisando as ásperas pedras da calçada, a Autoridade Nacional de Comunicações (ANACOM) e a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC), que não se opuseram, em pareceres prévios à decisão da AdC, à referida operação.
Lavando as mãos como Pilatos, a ANACOM passou a outros a tarefa de dilucidar a magna questão, aclarando que, pela sua parte, não vislumbrara “mercados de comunicações electrónicas potencialmente afetados pela operação em causa”, que “não suscita questões concorrenciais relevantes”.

O aval que a ERC não deveria ter dado
Tarefa mais espinhosa caberia à ERC, até pelas respectivas atribuições e competências, aliás de raiz constitucional, já que lhe cabe, designadamente, “assegurar” “a não concentração da titularidade dos meios de comunicação social” e “a possibilidade de expressão e confronto das diversas correntes de opinião” (Cfr. Art.º 39.º, n.º 1, alíneas b) e f) da CRP).
No entanto, para surpresa até dos mais cépticos, tendo em conta o gigantismo da operação em vista e os efeitos devastadores que ela teria, veio a ERC declarar que não se opõe, “por não se concluir que tal operação coloque em causa os valores do pluralismo e da diversidade de opiniões”.
Sucede que a mesma ERC, encaminhando-se já para essa infausta conclusão deixada no derradeiro parágrafo do Parecer, lavrara, na página anterior, dois significativos pontos, a saber:
“8. Assinalando que, em resultado de tal tarefa (um “aturado exame” e um “levantamento exaustivo e detalhado quanto possível das questões e implicações”…), e ao menos prima facie, ou em tese, foram identificados na operação em causa componentes passíveis de (de) algum modo contenderem com os valores do pluralismo e da diversidade de opiniões, cuja tutela cabe à ERC em particular acautelar;
“9. Destacando, designadamente, em matéria de actividade de televisão, que os serviços de programas televisivos generalistas, sobretudo detidos por operadores privados, apresentam já no presente lacunas em matéria de diversidade, cumprindo apenas parcialmente os compromissos a que, a vários títulos, estão obrigados;”   
Bem andou o vice-presidente da ERC, Mário Mesquita, o único a votar contra, ao exarar na sua declaração de voto de vencido:
“A concentração numa única empresa de um dos mais seguidos serviços de programas de televisão generalistas existentes em Portugal, de um poderoso grupo de rádio (o segundo mais ouvido no país), do jornal com maior difusão nacional e alguns dos sites de media mais participados e os riscos inerentes ao desenvolvimento desse grupo de comunicação mediática são motivos mais do que suficientes para que a ERC se recuse a dar o seu aval a esta operação.” 

O poder de influência da Cofina
Basta um voo pouco mais que rasante sobre o puzzle que representam já hoje a Cofina e a Media Capital para concluir, sem a mínima margem de erro, que os reguladores autorizaram uma verdadeira hidra comunicacional, com um poder nunca imaginado de influência sobre o espaço público e um potencial de formatação das mentalidades porventura jamais equacionado em nenhuma teoria da instrumentalização do aparelho mediático na longa e dura batalha ideológica da qual os cidadãos são em geral peões indefesos.
Através de seis empresas consolidadas na Cofina SGPS, SA, a Cofina opera nos segmentos de publicações de jornais e revistas, emissões televisivas, produção e criação de sítios para desenvolvimento de negócios em linha e promoção e organização de eventos, impressão de jornais, distribuição de publicações, jogos e apostas em linha e prestação de serviços de gestão e dinamização de um fórum financeiro na Internet.  
Com a eficaz sinergia entre o jornal diário (Correio da Manhã) e o canal de televisão no cabo (CMTV) com maiores audiências no país constituindo o navio-almirante do grupo, a Cofina possui já um poder de fogo e de uma influência, sobretudo junto das camadas populares, incomparavelmente superior aos dos seus concorrentes.
Mesmo que se tente relativizar a sua importância, por estar aparentemente “reduzida” à distribuição por cabo, a CMTV tem hoje muito mais significado do que a análise simplista da ERC sugere, devido à já quase generalização do cabo e ao abaixamento dos padrões de exigência na oferta televisiva proporcionada por aqueles a quem poderemos chamar, à falta de melhor, mediadores terceiros (e informais) do consumo de media.
Segundo o mais recente relatório da ANACOM, no final do primeiro semestre de 2019, cerca de 86% das famílias dispunham de serviços de distribuição de sinais de televisão por subscrição.
Por outro lado, a CMTV, que se reclama líder de audiências no cabo há três anos consecutivos e almeja o acesso à distribuição na plataforma de televisão digital terrestre (TDT), está notoriamente presente nos ecrãs dos televisores de inúmeros locais de acesso público – das salas de espera de consultórios e internamentos públicos e privados aos cafés e restaurantes, passando até por muitos locais de trabalho – tornando-se omnipresente nas nossas vidas, mesmo que o não queiramos.      
Acresce também o conjunto de jornais diários, nomeadamente o desportivo Record e o económico Jornal de Negócios; de revistas, como a semanal Sábado, a TV Guia e a Máxima, bem como uma gráfica e a participação numa distribuidora de jornais e revistas VASP e, ainda – e já não é nada pouco! –, pelo menos 18 sítios na Internet, que vão da informação aos anúncios classificados e às apostas em linha.

O poder da Media Capital
Numa altura em que se compra menos jornais, como veremos mais adiante, e é cada vez maior a dependência das redes e da Internet em geral, a este portefólio de 27 plataformas a Cofina tem agora mãos livres para, com a compra da Media Capital, acrescentar ainda mais poder e conseguir um super-conglomerado de comunicação social.
Até aqui controlado em 94,69% pelo grupo espanhol Prisa, dono do jornal El País, através da Vertix, SGPS, SA, da qual detém 100% do capital, o Grupo Média Capital SGPS, SA, conglomera quatro dezenas de empresas, operando nas áreas de rádio, de televisão e de Internet, aquisição e distribuição de direitos cinematográficas, produção de audiovisuais e de música e organização de eventos, embora os serviços de televisão e de rádio sejam os mais visíveis.
Além de um canal de televisão em sinal aberto, que é a TVI generalista, possui outros cinco no cabo (TVI24, TVI África, TVI Internacional, TVI Ficção e TVI Reality); a produtora de audiovisuais Plural (uma das maiores da Península Ibérica); o maior grupo de rádios – a MCR – com a Radio Comercial, a m80, a Smooth FM, Cidade FM e a Rádio Vodafone, que cobre todo o país à custa do sacrifício de duas dezenas de rádios locais transformadas em meros repetidores das suas emissões centralizadas, bem como 14 rádios digitais temáticas; uma subsidiária (EMAV) dedicada à disponibilização de equipamento de gravação e de transmissão por satélite; duas empresas de gravação e distribuição de música; e ainda a plataforma de TVI Player e mais uma dezena de outros sítios na Internet, capitaneados pelo portal IOL.

Super-Cofina: a hidra comunicacional
Ora bem, tudo visto e recapitulando, significa que a Cofina passará a deter: 
  • Um canal generalista de televisão – a TVI, por agora o segundo em audiências (17% nas primeiras 40 semanas de 2019)
  • Seis canais de televisão por cabo – um deles, a CMTV, líder neste mercado  
  • Um jornal diário de informação geral – o Correio da Manhã, líder no mercado da imprensa (73.195 exemplares de circulação paga total (impresso e digital) por número no 5.º bimestre de 2019[2])
  • Um jornal diário de desporto – o Record, líder entre os auditados neste segmento (29.941 exemplares)
  • Um jornal diário de Economia – o Jornal de Negócios, o único auditado (8.764 exemplares)
  • Um jornal diário gratuito – o Destak
  • Uma revista semanal de informação geral – Sábado, líder no seu segmento (43.479)
  • Uma revista semanal de televisão – a TVGuia, a segunda do mercado (41.925)
  • Uma revista mensal feminina – a Máxima, 3.ª no segmento (23.187)
  • Um jornal universitário…
  • Cinco estações de rádio de cobertura nacional, várias líderes nos seus segmentos
  • 14 rádios digitais
  • 29 sítios na Internet
  • Uma gráfica
  • Uma distribuidora de publicações
  • Uma produtora de audiovisuais e de entretenimento
  • Uma empresa de gravação e de transmissão por satélite
  • Uma empresa de gravação e
  • Outra de distribuição de discos

Com esta operação, que não gerou grande inquietação nem causou qualquer sobressalto aos poderes, incluindo ao Presidente da República, são por demais evidentes os riscos de um afunilamento editorial – e ideológico – dos múltiplos meios de que a Cofina passará a dispor e para os quais não deixará de definir orientações comuns, por muito que a ERC tenha acreditado nos “compromissos assumidos” pelo grupo “em termos de preservação da autonomia e identidade editorial dos diversos órgãos de comunicação social que passam a integrar o (seu) universo”.
Por outras palavras e encurtando razões, é evidente o risco de uma única central de comando estar agora muito mais em condições de determinar o que vêem, o que ouvem, o que lêem, o que buscam e o que encontram os portugueses; que agenda e que guião conduzem os seus passos, conformam as suas opções e determinam as suas decisões.
Bem escusa a Cofina de assegurar que preservará a “autonomia e identidade” dos órgãos que agora lhe caem no regaço. Não necessita, quando é infelizmente evidente o mimetismo quase generalizado da agenda e do estilo dos seus principais meios de informação pelos órgãos “concorrentes”, em particular a TVI…    

Circulação de jornais e revistas
Bem sabemos que são cada vez menos as ilusões acerca do pluralismo e da diversidade informativas, de opinião e de lazer que os media nos proporcionam, ou até a suspeita, talvez razoável, de que há uma espécie de central que determina o consenso sobre o que é notícia, de que ângulos se analisam os acontecimentos e o valor de mercado das ideias, propostas e realizações humanas.
Talvez isso justifique muita da resignação colectiva face ao poder dos media, sobretudo se nos rendermos à evidência de que esse poder é inexorável tendo em conta a natureza capitalista da propriedade do negócio das notícias.
E é também provável ajude a explicar em parte (só em parte…), como se de uma rebelião silenciosa se tratasse, a gravíssima queda da circulação paga de jornais e revistas a que temos vindo a assistir e em cujo quadro ocorre o movimento de concentração da Cofina.   
Analisando-se os dados da Associação Portuguesa do Controlo de Tiragens (APCT), relativas à circulação total paga (impressa e digital)[3], verifica-se que, nos últimos 15 anos, a média de exemplares dos sete principais jornais e revistas diários e semanários nacionais vendida no quinto bimestre de cada ano desceu mais de 47%, isto é, um total de 285.994.
Ou seja, enquanto em 2004 o Correio da Manhã, o Diário de Notícias, o Expresso, o Jornal de Notícias, o Público, a Sábado e a Visão[4] totalizavam 608.213 exemplares – o que já então era manifestamente modesto, para não dizer ridículo, numa população de dez milhões de habitantes e já numa curva ascendente de escolarização –, em 2019 venderam apenas 322.219.
Saliente-se que, nesse período, todas as publicações periódicas consideradas no estudo para efeitos desta intervenção registaram perdas apreciáveis, destacando-se o Diário de Notícias (-81,96%), a Visão (-64,68%) e o Jornal de Notícias (-60,97%).

Tabela – Variações quinquenais da circulação total paga (2004-2019)
PUBLICAÇÃO
2004^2009
2009^14
2014^19
2004^19
Ex.
%
Ex.
%
Ex.
%
Ex.
%
Correio da Manhã
565
0,00
-11388
-9,41
-36399
-33,21
-47222
-39,22
Diário de Notícias
-10401
-0,28
-11185
-40,87
-9371
-57,90
-30957
-81,96
Expresso
-27213
-0,20
-14474
-13,09
-11035
-11,48
-52722
-38,26
Jornal de Notícias
-32366
-0,29
-20002
-24,93
-16279
-27,03
-68647
-60,97
Público
-15869
-0,31
-3328
-9,61
3236
10,34
-15961
-31,61
Sábado
30844
0,62
-26389
-32,82
-10538
-19,51
-6083
-12,27
Visão
-5266
-0,05
-21963
-23,29
-37173
-51,38
-64402
-64,68
Totais
-59706
-0,10
-108729
-19,82
-117559
-26,73
-285994
-47,02
Fonte de dados originais: APCT

E que tal discutir as causas?  
Há seguramente razões diversas que explicam este declínio deletério para a formação cultural e cívica dos cidadãos, em parte devido às tendências que se rendem mais à (aparente) abundância e à facilidade de “consumo” nos meios electrónicos, nos quais também podemos considerar a Internet de acesso livre e gratuito, em parte também por causa do peso dos encargos com a aquisição de jornais e revistas nos orçamentos familiares, entre outras razões objectivas que poderíamos encontrar nesta discussão.
Mas haverá outras causas, porventura mais subjectivas, que um debate sobre a comunicação social e as fronteiras da democracia seguramente poderá considerar.
Arrisquemos algumas.
Por exemplo, observando as variações quinquenais talvez sejamos tentados a notar uma estranha coincidência entre a ocorrência de volumosos despedimentos, atingindo praticamente todas as publicações consideradas, e a diminuição muito significativa de vendas.
Será que confirmam as advertências, então, da Direcção do Sindicato dos Jornalistas, para os efeitos contraproducentes dos despedimentos, que se traduziriam numa redução da qualidade do serviço prestado aos leitores? É uma hipótese a não descartar…
Outro exemplo: será que os jornais estão cada vez mais longe de satisfazer os interesses e as necessidades dos cidadãos e de contribuir para a formação de uma opinião pública esclarecida?

E nós, nesta sala, o que dizemos?
Vamos ao debate?



[1] Este texto corresponde à intervenção no debate A Comunicação Social e as Fronteiras da Democracia, realizado ontem na Biblioteca de Fânzeres, numa iniciativa da Associação Conquistas da Revolução | Junta de Freguesia de Fânzeres e S. Pedro da Cova.
[4] No estudo, que partiu de uma análise aos dados de circulação desde 1989, considerou-se útil considerar apenas este grupo de publicações, por corresponderem ao grupo que resistiu de forma constante entre 2004 e 2019, já que muitas iniciaram e/ou cessaram a publicação ou a submissão ao controlo da APCT ao longo do período originalmente considerado. Por outro lado, estabeleceu-se o ano de 2010 como o de estabilização para efeitos da adição da circulação em formato digital.




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