Jornalismo: quantos lados tem uma guerra?
O jornalista, antigo presidente do Conselho Deontológico e professor de ética e deontologia do jornalismo Oscar
Mascarenhas (1949-2015) expôs, no texto inaugural da sua coluna do provedor do Diário
de Notícias, uma exigência fundamental que as redacções deveriam ter em
conta, especialmente nos tempos que correm: "Por mim, e nestas coisas do jornalismo,
tenho uma intransigência verdadeiramente ideológica: quero que me contem do
mundo pelo menos duas versões - e deixem-me escolher em paz"[1].
Ocorre-me
esta espécie de manifesto pelo pluralismo a propósito da intensificação da
campanha que procura banir, ou pelo menos isolar, e praticamente condenar ao
opróbrio muitos dos que, de uma forma ou de outra, conseguem ler e interpretar
os acontecimentos – nomeadamente no Leste da Europa – sob ângulos e pontos de
vista afastados do consenso imposto no espaço público, e em particular nos
meios de informação – precisamente aqueles sobre os quais impende a obrigação de
pluralismo.
Ainda nesta
quarta-feira, o Correio da Manhã dedicou um generoso espaço ao que, sintomaticamente,
tachou como “Pegada russa na comunicação social”. Não que houvesse um grama que
fosse de novidade, mas simplesmente para, no essencial, fazer a revisão da
matéria dada no que toca a esquadrinhamento das análises de três oficiais
generais portugueses (na reforma) em canais de televisão, com o intuito de os colar
a um dos contendores.
O major-general
Carlos Branco “não é o único a mostrar o lado da Rússia”, escreve, associando
também os igualmente majores-generais Raul Cunha e Agostinho Costa a tentativas
de explicação “do lado russo”, concluindo num tom sentencioso:
“Os três
militares já negaram publicamente, ao jornal ‘Expresso’, serem pró-Rússia.
Todavia, contradições não abonam a favor da busca pela verdade, nem da
imparcialidade a que o jornalismo deve obedecer”.
Curiosamente,
o texto do CM é dado à estampa no dia seguinte ao da publicação do segundo e
último “post” de Carlos Branco, no blogue Cortar a Direito (ver aqui
e aqui),
dedicados, precisamente, a comentar/desmontar uma peça na revista Sábado,
de 31 de Março, sobre as alegadas contradições dos mesmos oficiais generais,
cuja chamada de capa não fazia por menos: “Guerra. Os disparates que os
generais portugueses dizem na TV”.
Já em 18 de
Março, o CM investia contra os mesmos oficiais, noticiando uma “revolta” entre “militares
no activo” devido às suas análises na SIC, que alegadamente “têm sido consideradas
por outros analistas, ‘pró-Putin’, o que estes negam, assegurando serem ‘neutrais’
nesta questão”.
Sob a mira do
CM continua também o “polémico” jurista da Presidência do Conselho de Ministros
Alexandre Guerreiro, ex-analista no Serviço de Informações Estratégicas de
Defesa (SIED), “apontado como defensor de Putin”.
A essa
espécie de quarteto maldito de analistas (ou comentadores, vá) “pró-russos”,
cuja “pegada” tanto teme, decidiu o CM juntar agora um repórter, Bruno Amaral
de Carvalho, dedicando-lhes nas páginas desta quarta-feira uma “caixa” com foto
– “Do lado das forças separatistas”, titula.
Referindo-se
a uma reportagem de Bruno Amaral de Carvalho na CNN Portugal, escreve que o
autor “chegou a Mariupol a acompanhar a guerra do lado das forças separatistas”,
como se os espectadores da CNN (e, antes, no dia 1, dos leitores do Público)
não tivessem direito à cobertura local dos acontecimentos no Donbass e “ao lado”
dos separatistas, e como se o direito do público a ser informado se resumisse à
cobertura do “lado” ucraniano/ocidental.
Razão para
perguntar, como fez o provedor do Público, José Manuel Barata-Feyo[2], insuspeito
de qualquer simpatia pró-Rússia, ou pró-Putin:
“Mas qual é o
lado da imprensa e dos jornalistas independentes na cobertura de uma guerra?
Qual é a sua função? A de informar tão completamente quanto possível ou a de,
na prática, divulgar apenas as posições de um dos lados?”
E também para
voltar a Oscar Mascarenhas[3]:
"Terrível
e formidável poder é este de impor a visão a outros. Um poder muito mais forte
do que a bárbara violência de arrancar os olhos – porque é muito mais fácil
cegar do que fazer ver. Conquanto este fazer ver seja, no fundo, cegar...”