Covid: Encarniçamento moral e capitalismo


Prossegue com grande afinco a caça às bruxas da prevaricação na vacinação contra a covid-19 e o afã punitivo contra os “fura-filas”. Afadigam-se uns a denunciar suspeitos e outros a esquadrinhar casos, empenhando-se outros a brandir ameaças de severas sanções, mandando para trás das grades por alguns anos quem quis, ou quem aceitou, a furtiva injecção e salvar a pele à revelia da lei e dos regulamentos.

Tais comportamentos são censuráveis, dizem que sim e parece talvez aceitável, em razão da escassez de um recurso tão precioso quanto vital – o que levou à fixação de estritas regras de prioridade –, sendo porventura pertinentes as candentes discussões sobre a natureza ilícita dos actos e provável a imoralidade das condutas tão zelosamente identificadas.

No plano dos princípios gerais de direito, puna-se quem violou a lei, se isso tranquiliza as consciências neste tempo de encarniçamento moral a que me referi – atrevo-me a supor que mais bem que mal – há coisa de uma semana.

Ao longo desta última semana, lemos e ouvimos mais certezas e sentenças do que dúvidas e inquietações, colocando a assim chamada ilicitude das condutas tão ferozmente escrutinadas no centro das atenções, quando talvez devêssemos recentrar o problema precisamente na raiz deste drama: a escassez de vacinas.

A que se deverá? Dizem que à falta de doses em quantidade suficiente para toda a gente, insuficiência esta derivada da falta de capacidade da indústria farmacêutica para as produzir em massa.

A falácia é evidente e não pode ser desligada do modelo capitalista, nem da ânsia do lucro, nem da ganância criminosa tão indiferente ao drama de milhões e milhões de seres humanos. Neste momento, há 130 países onde vivem 2,5 mil milhões de pessoas, ou seja, um terço da humanidade, que não receberam uma única dose, advertiu, a sexta-feira, o director-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS).  

Na senda de sucessivos apelos da OMS, e também de organizações de cientistas, que pedem a libertação das patentes, Tedros Adhanom Ghebreyesus, colocou de forma muito directa o dedo na ferida, ao pedir às farmacêuticas a partilha de dados, conhecimento e mesmo tecnologia com outros fabricantes, de modo a permitir a produção das vacinas em larga escala e a abastecer rapidamente todos os países.

Trata-se de uma dupla obrigação moral das companhias que “receberam fundos públicos substanciais”, como bem acentuou Ghebreyesus. Ainda há dias, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, enfatizava precisamente a necessidade de mais ajuda à indústria farmacêutica, isto é, às marcas com as quais fez negócio, para que alargassem as suas linhas de produção.

Qual deverá ser a nossa linha de inquietação e de protesto? Exigir que as detentoras das patentes respondam aos apelos da OMS e que nomeadamente a Agência Europeia do Medicamento avalie com urgência as vacinas produzidas em países terceiros – nomeadamente a Rússia e a China – susceptíveis de virem reforçar o abastecimento.

Face à gravidade da situação sanitária global, o verniz do pragmatismo de mercado não pode continuar a dissimular a ganância do capitalismo. Esta, sim, é a questão moral que deveria mobilizar as almas tão preocupadas e tão mesquinhas com os pequenos ilícitos.


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