Diário Off (2)
Confinamento. “Acto de efeito de confinar(-se)”, ou “acto ou
efeito de isolar(-se) em dado lugar <monges
vivem em c. nas suas celas>”, ensina o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Portanto, vai em 40 dias
que me confinei, que me confinaram.
Porém, deixaram por minha conta e risco os elevadores dos
estores, os manípulos das janelas e da porta da varanda e os interruptores e
comandos de toda a quinquilharia tecnológica posta ao alcance da humanidade
para que possa observar-se universalmente ao espelho quer que viva um átomo de
gente.
É assim que vejo o mundo à minha volta e muito mais do que
vai além da barreira dos prédios em redor, que alcanço incomensuráveis léguas
de distância para lá dos montes que julgam limitar-me a Nascente e percorro
incontáveis milhas sobre o mar que consigo enxergar a Poente.
O olhar, à vista desarmada, e os sentidos em geral detectam
sinais de vida anormal. Há – ouve-se, vê-se, sente-se – crianças a brincar mais.
O parque infantil da praça está manietado pelas implacáveis fitas da Polícia
Municipal. É proibido brincar em público, colectivamente.
Há pátios, varandas e janelas com crianças – por vezes,
muitas vezes – acompanhadas pelos pais, como nunca ou raras vezes vi,
brinquedos que se movimentam como por magia. Um homem ensina a menina a fazer
bolinhas de sabão. Oiço um “chuta!”, um som de bola batida, um som cavo numa
parede, e um “é assim mesmo!” efusivo e carinhoso.
Dizem-me que há males que vêm por bem e que muitos progenitores
(re)encontrarão as delícias da paternidade/maternidade e que muitas crianças
descobrirão que afinal há uma dimensão do afecto e do amor cujo alcance lhes
estava vedado.
Nalgumas janelas, poucas, há desenhos coloridos reinventado
arco-íris de esperança. Mas já sabemos que não, não vai ficar tudo bem. Mesmo
que uns 70 – ou 700, ou 700 mil, ou 700 milhões que fosse – pastores evangélicos
arregimentem fiéis em caravanas
automóveis e concentrações e “correntes de oração” contra a pandemia, ou
que dos baús do sinistro
mosteiro do Vale dos Caídos ressuscitem preces à Virgem para que nos livre
da nova peste.
Do mundo imenso que me entra pela janela digital, sobram
evidências de velhas, revelhas e perigosas pestilências que se acantonam em todas
as trincheiras, ou tentam tomar todas as praças, qualquer que seja o pretexto
para a Falange fascista espanhola mostrar-se
ostensivamente à luz do dia, agora contra o confinamento, e sempre num
ajuste de contas com a democracia.
O fascismo não pode passar, nem mesmo encavalitado num vírus,
nem defecando directamente de um cérebro como o do ministro dos Negócios Estrangeiros
brasileiro, esbracejando
contra o “comunavírus” que há-de trazer aí o “pesadelo comunista”.
É preciso permanecer de atalaia contra essa gente. Cuidemo-nos, mas
que o confinamento não nos torne mais egoístas nem nos tolha a resistência.