Crise Social, Caminhos alternativos

Da esquerda para a direita: Sérgio Dias Branco, D. Januário Torgal Ferreira, Jorge Sarabando, D. Jorge de Pina Cabral e Alfredo Maia 

Numa iniciativa inédita e muito rica de conteúdo e de perspectivas de diálogo, o Sector Intelectual da Organização Regional do Porto do Partido Comunista Português realizou hoje um interessante e produtivo debate subordinado ao tema “Crise Social, Caminhos alternativos”, no qual intervim com o texto que se segue.

Tive como companheiros de mesa D. Januário Torgal Ferreira, bispo emérito das Forças Armadas, D. Jorge de Pina Cabral, bispo da Igreja Lusitana, e Sérgio Dias Branco, professor universitário, dirigente sindical e leigo dominicano. A moderação foi de Jorge Sarabando.


Eis o que disse:


Trago na memória da adolescência uma canção, que creio composta por José Brás, à época presidente da Juventude Operária Católica (JOC), que começava com esta interpelação:

Quem constrói as fábricas

E produz tecidos?

Quem semeia os campos

E faz deles jardins floridos?

 

E logo o refrão respondia com acerto:

São os trabalhadores!

São os trabalhadores!

 

Estas estrofes tão singelas expressam com felicidade uma tomada de consciência de classe sem a qual não é possível – ou é pelo menos muito difícil – compreender a raiz dos problemas da profunda injustiça na repartição da riqueza e da pobreza, que se agrava de forma cada vez mais alarmante e que deve envergonhar-nos a todos.

As estatísticas oficiais aí estão a confirmá-lo:

Em 2021, em Portugal, mais de 2,3 milhões de pessoas, quase um quarto da população do país (22,4% para ser exacto), viviam em situação de risco de pobreza ou exclusão social, já após transferências sociais.

Se não fossem essas transferências, a proporção de habitantes em risco de pobreza ou exclusão social seria de mais 4,5 milhões de pessoas, portanto pouco menos de metade da população.

(Só para termos uma amostra da importância dessas transferências, note-se que, em Setembro passado, havia 97 343 famílias com processamento de rendimento social de inserção, num valor médio de 260,55 euros por família. Saliente-se: só no distrito do Porto, registava 26 344 famílias, ou seja, 27% do total do país.)

 

Em contrapartida, só em 18 grandes grupos económicos, foram distribuídos aos respectivos accionistas, no primeiro semestre deste ano, quase três mil milhões de euros de dividendos, ou seja, a participação nos lucros, relativos a esse mesmo ano de 2021.

Em relação ao primeiro semestre de 2022, que dizem de crise, os dados já conhecidos apontam mais de quatro mil milhões de lucros somados apenas numa dúzia de empresas – em particular dos sectores da banca e seguros, da energia e da grande distribuição alimentar.

A título de exemplo:

- Na energia, a Galp regista lucros de 608 milhões de euros nos primeiros nove meses do ano, correspondendo a um aumento de 86% face a igual período de 2021;

- Na banca, os cinco maiores bancos registaram lucros fabulosos nos primeiros nove meses do ano: o Novo Banco obteve 428,3 milhões de euros (o triplo do registado em igual período do ano passado); o Santander, 385 milhões (o dobro); o BPI obteve lucros de 286 milhões de euros (mais 18% face a igual período de 2021); o BCP, na sua atividade nacional, obteve 295 milhões de euros de lucros (aumento de 56% face a igual período de 2021);

- As seguradoras obtiveram lucros de 320 milhões de euros no primeiro semestre de 2022, superando em cinco milhões o registado em 2021 e em 121 milhões de euros o registado em 2020.

- Na grande distribuição alimentar, a Jerónimo Martins obteve lucros de 419 milhões de euros, um aumento de 29,3% em relação ao período homólogo; já na Sonae foram de 118 milhões de euros os lucros neste período, praticamente o dobro do ano passado.

 

No caso da grande distribuição, é bem visível o escândalo da desumana contradição entre a acumulação de riqueza pelos grandes grupos e a sucessão de aumentos galopantes dos preços de bens essenciais.

De acordo com um recente estudo da Deco-Proteste, nos últimos nove meses, os preços da pescada fresca aumentaram 78%; do arroz carolino, 53%; do leite meio-gordo, 43%; do bife de peru, 33%; dos ovos, 33%; e da laranja, 32%. Só na última semana de novembro, o arroz carolino aumentou 33%; a pescada 19% e a couve-coração 13%

Todos os dias vemos, nos supermercados, cada vez mais pessoas angustiadas, hesitando dramaticamente entre os alimentos essenciais a levar para casa e os produtos a deixar na banca, acabando por sair com os sacos cada vez mais vazios.

Nas escolas, há cada vez mais crianças a começar o dia sem uma refeição e manifestamente com fome. E, no entanto, foi chumbada no Parlamento uma proposta do PCP com vista à generalização da distribuição de leite e fruta no ensino obrigatório e à gratuitidade das refeições escolares.

 

O que os dados sobre pobreza e os lucros que referi acima confirmam é uma maior apropriação, pelo capital, da riqueza produzida por quem trabalha, e que mesmo quem trabalha está a empobrecer de forma mais acelerada, devido à profunda degradação dos salários em geral, e em particular do salário mínimo nacional.

Esta retribuição mínima garantida, saliente-se, abrange mais de um quarto dos trabalhadores por conta de outrem a tempo completo, segundo dados do Gabinete de Estatística e Planeamento do Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social.

E é necessário sublinhar que há milhares de trabalhadores em situação de precariedade, trabalho parcial, à peça ou clandestino que nem tão-pouco auferem o salário mínimo.

A situação descrita em traços largos e incompletos coloca em destaque os resultados do abuso desmedido do lucro e da acumulação de riqueza baseados num modelo de baixos salários e de uma espiral incontrolada e especulativa de preços que penaliza os mais fracos.

Creio ser apropriado citar nesta oportunidade uma justa observação do Papa Francisco, na sua “Carta Encíclica Fratelli Tutti, sobre a fraternidade e a amizade social”, de 3 de outubro de 2020 (parágrafo 21):

“Há regras económicas que foram eficazes para o crescimento, mas não de igual modo para o desenvolvimento humano integral. Aumentou a riqueza, mas sem equidade, e assim ‘nascem novas pobrezas’.”

E, mais adiante, (parágrafo 119), observa que “se alguém não tem o necessário para viver com dignidade, é porque outrem se está a apropriar do que lhe é devido”.

A situação descrita também coloca em evidência a emergência do aumento justo do salário mínimo nacional (que o PCP propõe para 850 euros) e a valorização geral dos salários, assim como das reformas e pensões (8% para todas, num acréscimo mínimo de 50 euros).

Trata-se de uma forma de contribuir para a recuperação do poder de compra e enfrentar os efeitos erosivos da inflação (está em 9,9%), mas também para encetar uma trajetória de mais justa redistribuição da riqueza, reequilibrando a divisão entre a parte devida ao trabalho e a parte de leão que é transferida para o capital.

O patronato bem insiste na estafada tese da impossibilidade de aumento dos salários, mas a verdade é que o fator trabalho tem um peso bem menor do que tantas vezes se procura argumentar. 

De facto, segundo o Banco de Portugal, os gastos com pessoal correspondem a apenas 15,56% dos rendimentos das empresas, sendo de 13,28% no caso das grandes e 17,12% nas micro-empresas.

Gostaria de também aqui regressar por instantes à encíclica Fratelli Tutti, recolhendo do parágrafo 123 estes trechos:

“É verdade que a atividade dos empresários é uma nobre vocação, orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para todos.

(…) Mas estas capacidades dos empresários, que são um dom de Deus, deveriam em todo o caso orientar-se claramente para o desenvolvimento das outras pessoas e a superação da miséria.”

 

Mais adiante (parágrafo 171), o Papa acrescenta:

“Gostaria de insistir no facto de que dar a cada um o que lhe é devido, segundo a definição clássica de justiça, significa que nenhum indivíduo ou grupo humano se pode considerar omnipotente, autorizado a pisar a dignidade e os direitos dos outros indivíduos ou dos grupos sociais.”

 

Ora, por estes dias, está em discussão e votação na especialidade, na Assembleia da República, uma proposta de alteração do Código do Trabalho e outros diplomas que o Governo designa “Agenda para o trabalho digno”, bem como um conjunto de propostas de alteração apresentadas pelo PCP que muito pode contribuir para a eliminação, ou pelo menos a mitigação, de práticas que atingem a dignidade dos trabalhadores.

É o caso da eliminação das várias formas de precariedade, que impede milhares e milhares de jovens trabalhadores de constituírem família em segurança;

do combate ao recurso abusivo e sistemático à laboração contínua e ao trabalho por turnos em empresas e sectores sem justificação que não seja a da mera potenciação dos lucros, privando os trabalhadores de uma vida pessoal e familiar equilibrada;

do combate ao uso dos regimes de bancos de horas e de adaptabilidade permitindo às empresas furtar-se ao pagamento de trabalho suplementar; e

da revogação do regime de caducidade das convenções colectivas de trabalho, que tem servido de arma de pressão para forçar os sindicatos a recuar ou suprimir direitos dos trabalhadores, ou mesmo para as fazer caducar em definitivo.    

 

Para concluir,

A pobreza em que são lançados milhões de seres humanos por um sistema que se apodera riqueza que deveria ser justamente repartida e a indignidade de condições a que são submetidos tantos e tantos trabalhadores não são fatalidades nem realidades insusceptíveis de transformação.

Comprometidos com os trabalhadores e em defesa da sua dignidade e dos seus direitos, é esse combate que continuaremos a travar.

 

Muito obrigado!   

OBS: As excelentes fotos são de Henrique Borges, que fui buscar, com a devida vénia à sua página no Facebook

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