A Vertigem das Palavras, de Carlos Ferreira*



Caros amigos,

Em especial, meu caro Carlos Ferreira,

Cumprimento também o pintor António Fernando, autor de um excelente trabalho, “Variações sobre um muro”, do qual foi extraído o pormenor o pormenor que ilustra a capa.

  

Creio ser costume começar-se por agradecer ao autor o convite, neste caso tão inesperado como honroso, mas comportando risco sério, tendo em conta a minha óbvia incompetência para a tarefa de que o Carlos Ferreira tão generosamente me incumbiu.

Devo dizer também que este livro – ainda na forma de provas de página – foi um magnífico companheiro de viagem e de cabeceira nos últimos meses, para meu prazer e proveito.

Cumprido o primeiro passo do protocolo, passo a perorar sobre o autor, como creio ser uso nestes actos.

Creio que em tempos se dizia daqueles que mostravam escassa apetência para ir à antena, isto é, falar na rádio (ou para cantar, não sei bem), que “têm boa voz para escrever à máquina”.

Comecei por conhecer o Carlos Ferreira pela sua voz, justamente na rádio.

Era – é! – uma voz poderosa e delicada, sensível, que produz um encantamento no ouvinte. Mas era – é! – uma voz realmente bela também para escrever.

Esclarecendo já o que corre o risco de ser interpretado como trocadilho de mau gosto, quero dizer: para além dos dotes vocais e interpretativos extraordinários que possui, o Carlos Ferreira maneja a palavra como poucos.

Era, nos tempos da rádio, uma máquina prodigiosa a escrever os textos que dizia aos microfones. Era no tempo em que a rádio celebrava a magia das palavras, na urgência contida de contar, de propor pistas de reflexão, de abrir alas ao pensamento.

E o Carlos era um mestre nessa celebração. Sei-o de o ouvir e testemunho-o de com ele ter acamaradado nesse projecto fantástico, mas infelizmente breve, que foi a Rádio Activa, onde manifestamente só tive voz suficiente para escrever à máquina, oficiando nas tarefas de redactor de notícias e, claro!, longe dos microfones. 

Insisto neste ponto, para salientar a importância que a escrita cuidada dos textos destinados aos meios audiovisuais não pode deixar de ter também nos dias de hoje, demasiado dados a liberdades coloquiais e ao manifesto excesso de improviso.

 

Ora,

Precisamente o poder e a densidade das palavras escritas para este livro, que nele reverberam com uma sonoridade que associo sem hesitações à voz de Carlos Ferreira, foi uma das primeiras impressões mais vivas com que fiquei, mal percorri as primeiras páginas, dando-me a imaginá-lo lendo-as para nós.

(Neste momento, Carlos Ferreira lê um trecho da obra)

 


“Ler é uma técnica. Um exercício”, diz-nos o Carlos Ferreira (pág. 155).

Mas, e vou continuar a citar:

“Ler em voz alta é sentir a verdadeira pulsação do livro. Anotar: é preciso saber ler. Ter uma agilidade. Fazer deslizar a cabeça pelo texto. Pegar na vida de trás para a frente”.

Este livro contém inúmeras alusões aos livros, a escritores – e jornalistas – e aos leitores, umas vezes com sobriedade e outras com uma ironia divertida e cortante.

Veja-se o “caso incrível do senhor Dias Santos” – cito novamente – “que devorava livros e quando resolvia explicá-los a alguém era um facto hilariante. Punha os livros do avesso. Dizia quase o contrário do que lá estava. Mas era indomável a sua inquietação literária”.

Há gente assim. Portanto, aqui temos um retrato, um tipo.

Aproveito para falar-vos de outra impressão que o livro me deixou, até à derradeira sílaba da quarta e última narrativa deste A Vertigem das Palavras.

O narrador surge como um patologista dissecando a cidade e as idiossincrasias humanas, sob o gume finíssimo do bisturi, severo, implacável, atento, delicado, por vezes sarcástico.

Talvez isso ajude a explicar a copiosa torrente de personagens que percorre a obra, nada menos de 266, se as contei bem, numa prodigiosa recolha e caracterização de tipos que densificam a efabulação, mas só pode resultar de uma observação atenta e meticulosa: é preciso ter visto muita vida para criar uma galeria assim.

Alguns exemplos a ter em conta na primeira narrativa, “Tempo”:

- O vigarista incólume

- Sandra Pizza e Adolfo C. Cola, co-fundadores da Associação de Personagens para Livros e Afins, cujo objectivo se dirige “à criatividade fast-food” da “literatura rápida”

- Soraya do Santíssimo Sacramento – uma deusa do amor no universo licencioso da Vila Rosada, ou

- Vittorio, encarcerado apenas por seu “um exímio passador de dinheiro falso”

A multiplicidade de personagens ajuda o autor na divagação pela cidade e por paragens estranhas e no seu sentido de insubordinação através dos livros:

“Na cidade. Nas cidades. Há uma multidão de livros que se atropelam. Livros selvagens” (pág. 18)

Mais: “As palavras adquiriram demasiados direitos e(,) agrupadas em livros(,) ganham uma força muito perigosa. Letal. (pág. 19)

(Neste momento, Carlos Ferreira lê um trecho da obra)


São também as personagens que auxiliam o autor na interpelação do sentido do próprio tempo:

“O tempo é medido pelo modo como se engendram os sonhos”, responde Vittorio (pág. 37), numa cela prisão do Canadá que partilha com Mário, emigrante português preso à conta da ânsia de amealhar fortuna e regressar depressa ao solo pátrio que o expulsara com a violência da pobreza.

De pobreza e miséria nos fala o autor também em “Revolta”, a segunda narrativa, numa linguagem dura e crua, expressa directamente da boca das “personagens do submundo do crime, do comportamento desviante” por oposição às personagens livrescas”, na crítica do autor:

“Nós não existimos para os tipos dos livros. Ou só existimos quando querem provar qualquer coisa de interesse para eles.” (pág 55)

Permitam-me aqui recordar um momento impressivo que vivi na última campanha eleitoral para as legislativas, durante uma acção num estabelecimento prisional, que me ocorreu à memória de forma muito viva ao ler esta parte do livro.

A dada altura, um jovem, mas já com um rol de condenações, fez-nos esta pergunta muito directa: “O que é que os senhores sabem do nosso mundo?”  

 

Carlos Ferreira assume claramente um programa de protesto, de incitamento à revolta, à insubordinação dos “malcomportados”, como Brechet: “Escrever sem pieguice ou reconforto. Para os massacrados. Para os banidos”.

Num registo teatral, o autor coloca em construção a consciencialização das injustiças, faz entrar em cena com toda a força os malcomportados, os excluídos, os marginais, que se apoderam do palco e depois da plateia, desconstroem o corpo social, as convenções e os preconceitos. É, enfim, a revolta dos escravos.

Alguns nomes e ofícios:

- Longa, ladrão, arrumador de carros

- Fred, assassino

- Gazela, a fugidia – foi bailarina, começou a despir-se por causa do vício

- Miss Grácil, prostituta, o nome diz tudo

- Fellini – o encenador

É o encenador quem, pelo punho do autor, desencadeia a grande revolta.

“Senhor Fellini, nós somos marginais!”, diz uma voz; e outra: “O senhor Fellini inspira-se na absoluta desgraça. Veio para agravar a consciência do que somos”.

E o que são?

“A escumalha. Os arrastados da mais íntima fome.”

“Que o palco mostre o focinho da realidade”, exorta o encenador, alimentando um crescendo de tensão que envolve os próprios espectadores, face à verbalização da tomada de consciência da exploração e das contradições económicas e sociais (na plateia, não falta um corretor da Bolsa…) e à consciência do poder e ao desafio à ordem estabelecida.

 – “Não suportamos o que o que se passa à nossa frente, senhor Fellini”, gritam do público.

– “Chegou a hora. A nossa hora. Hora de esmagar modelos mecânicos. Pressões pseudossociológicas. Este é o acto de existir”.  

 

O terceiro texto de A Vertigem das Palavras – “Cidade” – pode bem ser resumido, por exemplo, como uma reflexão sobre o destino das cidades nas garras dos predadores, sob o manto das indiferenças.

“O dedo felino aponta o desenvolvimento como a palavra acariciada ainda que de curta mente. Ah! Progresso. Oh! Fantástica transformação”, escreve Carlos Ferreira.

De que nos fala?

Da “cidade das intervenções a peso de ouro dos T0 e T1. Da Arquitectura da inutilidade. A cidade mercantilizada sem decoro”.

E: “Cada vez mais a cidade-ilha morre afogada”.

O texto remete-nos para a importância dos lugares, das memórias e dos afectos.

A páginas 138, interpela:

“Faz diferença onde se nasce? Uma pergunta. Sem dúvida uma pergunta.”

Há nesta cidade uma rua chamada Rua do Mar. A toponímia tem algo de presságio, mas também de resistência: foi a única a salvar-se da fúria da água que inundou a cidade; e onde o amor também se salvou.

Vale a pena acompanhar Elvira e Wilson – “os dois interessam-se por patologias sociais amorosas” – na sua subida à montanha para ver o mar, o mar que engole a cidade menos a Rua do Mar, onde vivem Ana e Ema. Ali, “amam-se com reflectida serenidade”.

 

Uma biblioteca pública é um lugar extraordinário para observar pessoas e perscrutar-lhes uma nesga da vida que seja.

Na derradeira narrativa – “Vida” –, Carlos Ferreira sente-a “como espaço materno”. Cito:

“Neste grande rectângulo em que estou sentado(,) vejo as cadeiras ocupadas e vazias. As caras debruçadas sobre os livros. As mãos que escrevem. As cabeças que pensam. Que imaginam. Todos aqui somos uma história. Somos uma totalidade de razões.”

É nela que encontramos o tal senhor Dias Santos que devorava livros mas não sabia explicá-los; o músico Osvaldino G., que gostava de poemas narrativos; o tipo de óculos escuros sentado ao fundo para ler o jornal mas nunca leu nenhum; e um velho frequentador diário que lê como se estivesse morto.

Por entre a torrente de 94 personagens ou tipos que só neste texto contei, do senhor Ralph, vendedor de quase tudo que se dá a avanços lúbricos com Lurdes, “rapariga bastante expedita”, à dezena de operários e empregados – “A classe operária ainda existe!”, proclamam o autor – voltamos a encontrar o próprio narrador tomando a palavra.

Está a reflectir sobre a cidade, o seu Porto, as consequências do desvario turístico, a voragem da especulação imobiliária e a gentrificação da urbe. É o cidadão a denunciar:

“Aqui onde vivo(,) eu ouço que a cidade está na moda e eu estremeço ouvindo os cliques dos fotógrafos desvairados.

(…) Cidade invadida. Agora(,) neste tempo pesado(,) belas casas compradas por endinheirados de latitudes diversas utilizadas alguns dias por ano. O turista compulsivo é bicho danado. Provoca alterações devastadoras. Dizima a paisagem. (…) Robotiza o comerciante. Abastarda o cozinheiro. Obriga a que um vasto sarilho se imponha ao habitante sem recursos. Expulsa o fraco como peçonha sem direitos.”

Nesse cortejo de personagens, também se acha um tal Aurélio da Assunção Perestrelo, jornalista desempregado que, tendo batido a tantas portas quantas pôde e sido recebido sem esperanças e mesmo com maus modos, “não descarta a possibilidade das questões culturais”, isto é, precisa o autor, “mandar sobre livros uns palpites travestidos de análises conscienciosas”.

Ora, pois é aqui mesmo que me calo, que outra coisa não tenho eu feito até agora senão debitar palpites irresponsáveis sobre este magnífico livro do Carlos Ferreira.

 

Muito obrigado!


* Texto de apresentação da obra, nesta data, na Associação de Jornalistas e Homens de Letras do Porto. As fotos são do Henrique Borges, que reproduzo com a devida vénia da sua generosa cobertura fotográfica para a sua página no Facebook 

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