Velho macarthismo travestido de puritanismo jornalístico (em solidariedade com Bruno Amaral de Carvalho)
Sou do tempo em que um dado
acontecimento podia ser coberto por jornalistas ao serviço de jornais de
orientações editoriais muito distintas – O Dia, O Diário, O
Primeiro de Janeiro, O Comércio do Porto, Jornal de Notícias,
Diário de Lisboa, Diário Popular, A Capital, Diário de
Notícias, Portugal Hoje, Expresso, O Diabo, Tempo,
O Jornal, etc. – e também na RDP e na Rádio Renascença (emissora
católica portuguesa) e na RTP.
Em todas as redações, havia
jornalistas com as mais diversas conotações, simpatias, filiações e até militâncias
dedicadas, como havia independentes. De muitos deles, sabia-se bem o que
pensavam e o que defendiam, mas não me recordo de, em serviço ou por causa
dele, ter sentido algum julgamento entre pares ou qualquer condicionamento em
razão das convicções de cada um ou da linha editorial do órgão de informação ao
qual vendia a força do seu trabalho.
Sou até testemunha de inúmeros
exemplos de entre-ajuda e de camaradagem – da passagem de apontamentos a este
ou àquele camarada que chegou atraso a um serviço, à troca de fontes, passando
por protestos colectivos quando alguém era discriminado – completamente indiferente
ao que cada um pensava e independentemente de onde escrevia. Éramos, simplesmente
jornalistas, camaradas de profissão. Ponto.
Sou também do tempo em que mesmo nos
jornais de direita havia jornalistas assumidamente de esquerda e assumidamente
comunistas. Acontecia, por exemplo, na Redacção de O Primeiro de Janeiro,
onde iniciei a profissão. Apesar de, a partir do final dos anos 1970, o jornal
ser propriedade e ter a orientação de facto do CDS (o seu fundador e presidente,
Diogo Freitas do Amaral, recebeu a titularidade das suas acções diretamente das
mãos de Maria Pinto de Azevedo), estando então editorialmente afunilado ao
campo do CDS e da AD, lá havia um grupo expressivo de militantes e amigos do
PCP.
E todavia, não creio que alguma vez
algum jornalista “de” outro jornal (hoje, diz-se da concorrência), ou sequer
algum colunista, tenha posto em causa o profissionalismo e a seriedade dos seus
camaradas de profissão. Pelo contrário, sempre conheci manifestações de apreço
e solidariedade, especialmente nas muitas lutas que a Redacção do velho “PJ”
travou.
Patrulhamento moral
Não é nostalgia, são factos. Apesar das
manifestas diferenças e de duras batalhas ideológicas que então se viviam
também nas redacções e na vida do Sindicato dos Jornalistas, respirava-se pelo menos um quantum
satis de camaradagem e de respeito.
É em boa parte por causa desses princípios
que absorvi e que ainda hoje procuro respeitar que me custa tanto compreender e
muito menos aceitar o patrulhamento moral exercido por alguns camaradas de ofício,
pelos vistos impolutos e acima de qualquer suspeita, arrogando-se uma espécie
de poder de esquadrinhar simpatias e filiações de jornalistas, para as colar de
imediato aos respectivos trabalhos, como selos de descredibilização e opróbrio –
é comunista, não podemos acreditar nele; é comunista, não tem o direito de
trabalhar num jornal…
Não é ficção, são factos. A obstinada perseguição
que há várias semanas está a ser movida por órgãos de informação (destaque para
o Correio da Manhã e agora a Visão), comentadores e até pelo
menos um governante ao meu camarada Bruno Amaral de Carvalho, expondo-o a
graves riscos para a sua integridade física e para a própria vida, e tentando ilegitimamente
acantoná-lo ideologicamente no exercício da sua profissão, é uma campanha absolutamente inaceitável.
Ah!, a "posição crítica em relação a Kiev"...
Na sua versão digital, a revisão
Visão deu-se, ontem, ao trabalho de destapar o segredo do Bruno Amaral
de Carvalho, anunciando que o meu camarada afinal é um perigoso deputado
municipal na Amadora eleito na lista da CDU e proposto pelo PCP. Como se ser comunista fosse um impedimento para o exercício da profissão de jornalista.
Trata-se de um verdadeiro manual de como
colocar ferretes a camaradas de ofício, referindo-se ao visado como o jornalista
freelancer “que está a fazer a cobertura da guerra na Ucrânia, guiado pelos
exércitos russo e de separatistas pró-russos”.
“Guiado”, classifica a Visão.
Razão para perguntar por quem são guiados os repórteres “guiados” pelas forças
ucranianas.
“Que se tem destacado a acompanhar a
guerra na Ucrânia (…) a partir do lado controlado pelo invasor russo”, prossegue
a revista. Portanto, os que que acompanham a guerra a partir do lado controlado
pela Ucrânia destacam-se em quê?
Mais: que o trabalho de Bruno Amaral
de Carvalho “tem motivado polémica e discussão junto da opinião pública
portuguesa, por o jornalista (…) manter uma posição crítica em relação a Kiev”.
E o trabalho dos que mantêm uma posição acirradamente crítica contra Moscovo e
laudatória de Kiev não mereceria uma referenciazinha?...
O crivo da Visão também destaca a mais que estafada acusação
de que o Bruno de Carvalho “tem destacado teorias que apontam para a ‘incorporação
de nazis’ no exército ucraniano, dando como principal exemplo aquele que,
normalmente, designa como ‘o neonazi batalhão Azov’, posição, aliás, que vai ao
encontro da defendida por elementos do PCP”. A Visão deveria saber muito bem – e há
muito tempo – que a qualificação do Batalhão Azov como neonazi não é do Bruno
Amaral de Carvalho nem do PCP: a imprensa nacional (incluindo a de referência,
como o Público) e internacional está coalhada de referências dessas desde
2014 (alguns exemplos aqui).
A importância da muleta "alegadamente"
Para a Visão, as referências do Bruno de Carvalho a objectos atribuídos a ucranianos com conotações nazis “alegadamente encontrados” em casas, ou os testemunhos de populares ucranianos “alegadamente ‘roubados’ pelas forças ucranianas” recolhidos em localidades controladas por russos, ou a bombas ucranianas são de duvidosa credibilidade. Portanto, apenas os vestígios e os testemunhos recolhidos no lado ucraniano são credíveis, nada do que narram é "alegado"...
De seguida, a Visão dá a palavra à diplomata aposentada e
ex-deputada no Parlamento Europeu, Ana Gomes, aliás arvorada por estes dias no
cargo de alta autoridade para a ética do jornalismo de guerra, para que
critique a CNN Portugal, “que continua a transmitir as reportagens da sua
autoria como se fossem imparciais”.
“‘Esta pessoa
[Bruno Amaral de Carvalho] não está em situação de fazer livremente o seu
trabalho. Aquilo que se vê nas suas peças é apenas a realidade de uma potência
invasora”, sublinha”, lê-se ainda. Razão para perguntar se, no lado
ucraniano, a realidade que os camaradas do Bruno mostram não é apenas a
realidade de um país invadido e se a Visão e vigilante Ana Gomes não entendem
como útil aos cidadãos o conhecimento do que ocorre em cada um dos lados.
Insistamos na questão: os jornalistas, Ana Gomes, João Galamba, os cidadãos consideram mesmo dispensável a cobertura jornalística "no outro lado" da guerra? Que noção e que valor dão realmente ao pluralismo jornalístico, incluindo o reconhecimento de que a realidade é sempre observada, analisada e contada de ângulos e perspectivas mais ou menos singulares?
Resumindo:
O velho macarthismo agora travestido
de puritanismo jornalístico anda à solta, farejando um comunista atrás de cada
repórter. Pena não haver mais camaradagem, respeito pelo trabalho dos outros e
defesa do direito dos outros ao trabalho. Não sei onde é que isto vai parar,
mas receio que acabe mal.
Basta!