Passageiro ocasional, memórias de guerra
Nesta manhã, tive como companheiro ocasional de viagem um homem, na casa dos 80, que se dirigia para um convívio de antigos combatentes. A princípio, pareceu-me muito fechado na sua vida e, sobretudo, pouco interessante. Para ajudar a justificar alguma indisponibilidade minha para a conversa, estava demasiado absorvido na minha leitura de viagem e, pior, acompanha-me uma teimosa irritação da garganta que me desarma em qualquer esforço coloquial.
Deu-se o caso de ter de auxiliar o senhor num pequeno e irrelevante incidente com o seu bilhete, quando o revisor surgiu. Que não estava habituado a viajar de comboio, justificou-se. "Ando nisto há 40 anos, mas..." No seu dizer, "nisto" quer significar convívios anuais de antigos combatentes na guerra colonial. Dirigia-se para mais um, algures no caminho para Lisboa. Trabalhos vários que já fiz sobre a guerra colonial, incluindo uma reportagem sobre desertores que me rendeu uma surpreendente colecção de cartas de agradecimento, há muito fizeram voar qualquer poeira de preconceito que tivesse sobre o assunto. De modo que dispus-me a escutá-lo e fiz as perguntas que o meu interesse sugeriu.
O homem foi franco, honesto, sem alardes de valentia nos relatos de operações e casos da guerra. A dada altura, observou que percebia bem que eu conheço o tema, acontecimentos, personagens, sei de locais, até datas, os respectivos contextos, mas desconhecia a minha opinião, o lado para o qual me inclino. Mas que, de todo o modo, iria prosseguir, dando até a sua visão, o que pensava de certos factos e de certas pessoas. E, por fim, o desgosto que o atormenta por ler e ouvir hoje tanta asneira sobre uma guerra que foi de facto ilegítima e tanto dano causou - em vidas, é certo que dois dois lados - e que tantas humilhações, sevícias e massacres sobre as populações.