O papa Francisco, a Ucrânia e as liberdades interpretativas sobre um apelo
Ao fazer hoje um apelo à paz na região da
Ucrânia, o papa Francisco ter-se-á referido mesmo, explícita ou implicitamente,
àquilo que a imprensa dominante classifica como “ameaça crescente de uma
invasão da Ucrânia pela Rússia”?
A pergunta faz sentido, tendo em conta a
extraordinária responsabilidade diplomática que uma afirmação em tal sentido
representaria para o próprio chefe de Estado do Vaticano e líder espiritual de
muitos milhões de católicos espalhados pelo mundo, especialmente na Europa.
No entanto, foi possível ler-se hoje, em
vários órgãos de informação em linha, uma notícia com o seguinte lead:
O Papa Francisco defendeu hoje que a ameaça crescente de uma
invasão da Ucrânia pela Rússia deve ser resolvida através de um diálogo sério e
considerou que avançar para "uma guerra é uma loucura".
Trata-se de uma replicação de um telegrama
da Agência Lusa datado de hoje, às 11:17:
Cidade do Vaticano, 09 fev 2022 (Lusa) - O Papa Francisco defendeu
hoje que a ameaça crescente de uma invasão da Ucrânia pela Rússia deve ser
resolvida através de um diálogo sério e considerou que avançar para "uma
guerra é uma loucura".
"Continuamos a implorar ao Deus da paz para que as tensões e
ameaças de guerra sejam superadas através de um diálogo sério e para que as
conversas no formato Normandia possam contribuir para esse fim", disse às
dezenas de fiéis reunidos na Igreja Paulo VI, no Vaticano, para a audiência
habitual das quartas-feiras.
Francisco referia-se ao formato de negociação com a participação
dos líderes da Ucrânia, Rússia, Alemanha e França, sobre a região ucraniana do
Donbass, controlada em grande parte por separatistas pró-Moscovo. Estas
negociações permitiram os acordos de Minsk, que estabeleceram um frágil
cessar-fogo entre as tropas ucranianas e as milícias rebeldes naquela região do
leste ucraniano.
"Não esqueçamos: a guerra é uma loucura", acrescentou o
Papa, que quis agradecer aos que responderam ao seu apelo para dedicar o dia 26
de janeiro à oração pela paz na Ucrânia.
Nesse dia, Francisco pediu para se rezar pela Ucrânia "para
que a fraternidade floresça naquela terra e as feridas, medos e divisões sejam
superados" e para que "o diálogo e o senso comum" prevaleçam
"entre os responsáveis pela Terra".
O Ocidente acusa a Rússia de estar a planear um ataque à Ucrânia e
reforçou, através da Aliança Atlântica (NATO), os dispositivos militares nos
países do leste europeu que fazem fronteira com a Ucrânia: Eslováquia, Polónia,
Hungria e Roménia.
A tensão entre a Ucrânia e os russos existe sobretudo desde que a
Rússia anexou a província ucraniana da Crimeia em 2014.
Mas a ameaça de um conflito mais sério e abrangente agravou-se,
nos últimos meses, com o Presidente russo, Vladimir Putin, a destacar cerca de
100 mil militares para a fronteira com a Ucrânia.
A entrada de vários dos países da antiga zona de influência da
União Soviética na NATO, como a República Checa, a Hungria, a Polónia, a
Bulgária, a Estónia, a Letónia, a Eslováquia e a Croácia, entre outros,
irritaram Putin que, pretende que a Ucrânia não siga o mesmo caminho, na
sequência dos movimentos de aproximação dos últimos anos.
Como se pode verificar, em nenhum momento
o papa Francisco se refere à pretensa “ameaça da invasão russa”. Tão-pouco
encontrei qualquer pista que o sustente.
Vejamos o que publica
o portal Vaticano News (versão em Português do VN):
Após a catequese na audiência geral, o Papa agradeceu
a todas as pessoas que rezaram pela paz no país da Europa Oriental em 26 de
janeiro e pediu-lhes que continuem a implorar a Deus para que prevaleça um
"diálogo sério".
Depois de ter lançado o enésimo e sincero apelo pela
paz na Ucrânia, o Papa Francisco na audiência geral tira os olhos do papel: ele
parece estar se dirigindo a todos os homens, ao mundo inteiro, e pronuncia
estas palavras improvisadas, intercaladas por uma breve pausa e um suspiro:
"Não esqueçamos - disse - a guerra é uma loucura!” Alguns momentos antes,
o Pontífice havia agradecido "a todas as pessoas e comunidades que em 26
de janeiro passado se uniram em oração pela paz na Ucrânia". E exortou-as
a continuar "a implorar ao Deus da paz para que as tensões e ameaças de
guerra sejam superadas através de um diálogo sério e que com esta finalidade
possam também contribuir as conversações no Formato Normandia”.
A Oração em 26 de janeiro
Em 26 de janeiro passado, no dia dedicado por
Francisco ao recolhimento pela crise que vive a nação do leste europeu, o Papa
havia concluído a audiência geral com esta intenção: "Peçamos
insistentemente ao Senhor que aquela terra possa ver florescer a fraternidade e
superar feridas, medos e divisões". Recordando então os sofrimentos do
povo ucraniano ligados à Segunda Guerra Mundial, o Pontífice lembrou que mais
de cinco milhões de pessoas foram aniquiladas durante a guerra: "É um povo
sofredor que merece a paz".
Diplomacia ao trabalho
As esperanças de paz também estão ligadas aos esforços
diplomáticos para encontrar uma solução para a crise na Ucrânia. Após conversas
com o presidente russo Putin em Moscou na segunda-feira, o presidente francês
Macron teve um encontro face a face com o chefe de Estado ucraniano Zelensky em
Kiev nesta terça-feira. Falando aos jornalistas, o chefe do Eliseu disse que
agora existem "soluções concretas práticas". "Agora", disse
ele, "há a possibilidade de fazer avançar as negociações" sobre a
paz. Em Berlim, Macron reuniu-se então com o Chanceler Scholz e com o
presidente polonês Duda. Na coletiva de imprensa conjunta, o chanceler alemão
não escondeu "o momento muito difícil" e reiterou que qualquer ataque
à integridade territorial da Ucrânia terá uma resposta "vigorosa". O
presidente polonês enfatizou a necessidade de proteger a integridade da Ucrânia
e garantiu que "ainda é possível evitar uma guerra". O caminho do
"diálogo" com Moscou, disse finalmente Macron, é a única maneira de
resolver o conflito.
Finalmente, atentemos no extrato do Boletim
da Sala de Imprensa do Vaticano que habitualmente transcreve literalmente
as alocuções dos papas, mesmo as improvisadas (tradução livre):
Apelo
do Santo Padre
Desejo
agradecer a todas as pessoas e comunidades que, no passado dia 26 de Janeiro,
se uniram em oração pela paz na Ucrânia. Continuamos a suplicar ao Deus da paz,
para que as tensões e ameaças de guerra sejam superadas através de um diálogo
sério e que possam contribuir para este objetivo também os diálogos no “Formato
da Normandia”. Não esqueçamos: a guerra é uma loucura!
Reflexão
final
Como vimos, o papa Francisco não se
referiu, nem explícita nem implicitamente, ao alegado propósito da Federação
Russa de invadir a Ucrânia; é o take
da Lusa que atribui tal sentido às suas palavras.
O que coloca um problema muito importante
na prática jornalística rigorosa e isenta: o dos riscos na interpretação do
sentido das declarações dos protagonistas.
Talvez os jornais possam arriscar em
matéria de liberdade interpretativa, consoante a sua própria orientação
editorial e o seu estilo, mas é duvidoso que uma agência noticiosa que se preze
de isenta e objectiva deva permitir-se tal.
O problema adquire maior densidade quando
os despachos das agências noticiosas – em Portugal e na generalidade dos países
– ou são inseridos automaticamente nas edições electrónicas dos órgãos de
informação ou publicados sob a pressão do tempo, sem espaço para reflexão,
verificação e correcção pelas redacções.
Tais circunstâncias tornam mais dramática
a responsabilidade da agência e muito crítica a questão das condições de
produção em que trabalham os jornalistas: a insuficiência de meios e recursos
humanos ajuda a explicar erros e falhas, porventura indetectáveis ao longo do
processo, quando o jornalista tem de produzir um conjunto de despachos sob o
rolo compressor da urgência, como se uma redacção fosse uma linha de montagem.
Talvez esse risco possa ser minimizado com
a recondução da agência ao papel primordial da agência: fornecer material
enxuto – objectivo, simples, directo e despojado de tentativas de interpretação
se sentidos, embora devidamente contextualizado.
Veja-se, como exemplo possível, o que
escreve a agência
Ecclesia:
Cidade do
Vaticano, 09 fev 2022 (Ecclesia) – O Papa reforçou hoje os seus apelos em favor
da paz na Ucrânia, alertando todas as partes envolvidas que a guerra é “uma
loucura”.
“Não nos
esqueçamos: a guerra é uma loucura”, declarou, no final da audiência geral que
decorre esta manhã no Auditório Paulo VI, do Vaticano.
Francisco
manifestou o seu apoio à nova reunião de nível consultivo dos líderes do Formato
da Normandia (Ucrânia, Rússia, França e Alemanha), em Berlim, na quinta-feira,
para procurar uma solução para a crise.
O Papa
começou por agradecer a todos os que aderiram à jornada de oração pela paz na Ucrânia, que decorreu a 26
de janeiro.
“Continuemos
a suplicar ao deus da paz para que as tensões e ameaças de guerra possam ser
superadas através de um diálogo sério e que possam contribuir, para este
objetivo, também os diálogos no Formato da Normandia”, disse.
A Ucrânia
enfrenta uma crise no leste do país, com conflitos armados entre as forças de
Kiev e separatistas pró-russos apoiados por Moscovo; a Rússia é acusada pelos
países ocidentais de preparar uma invasão ao território ucraniano.
O governo
russo nega as acusações e critica o Ocidente por, alegadamente, procurar o
alargamento da NATO até às suas fronteiras, exigindo o fim do reforço militar
da Aliança Atlântica no leste europeu.