Muleta discursiva ou enxerto opinativo?

 


Há uma velha regra do Jornalismo segundo a qual “a distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público”. A norma deontológica (parte final do n.º 1 do Código Deontológico) é clara, mas nem sempre é respeitada na letra e no espírito, seja por deslize de um certo jornalismo “interpretativo”, ou “de autor”, seja por razões que nem sempre são claras aos olhos do público.

No “Jornal da Tarde”, da RTP, de hoje, ocorreu um episódio digno de reflexão.

Sonorizando uma peça sobre a situação negocial da proposta de Orçamento de Estado entre o Governo e nomeadamente o PCP e o BE, o redactor, depois de enquadrar os próximos contactos, que reputa como “uma nova ronda decisiva”, enfatiza:

“Entre análise, muita encenação e algum teatro, a verdade é que fala-se do que nunca se falou nos orçamentos anteriores: em crise política, em eleições antecipadas.”

De seguida, entram as declarações do Presidente da República a repetir que já “preveniu em público e preveniu em privado” que avançará para “eleições antecipadas”, entrando depois a conclusão do redactor/fim da peça, indicando que a “votação do documento, na generalidade, no início da próxima semana, vai ditar o desfecho”.

Conclui-se que a afirmação segundo a qual a pretensa crise orçamental decorre entre “muita encenação e algum teatro”, não tendo sido atribuída a nenhum protagonista, pertence ao redactor, tornando-a susceptível de ser considerada como expressão da opinião do jornalista.

Porém…

Imediatamente a seguir, a pivô lança a peça seguinte, com declarações do líder do CDS-PP, Francisco Rodrigues dos Santos, ainda sobre as discussões entre o Governo e outras forças – nomeadamente o PCP e o BE. São dele as seguintes palavras:

“O que tem acontecido nos últimos seis anos é que, sempre que se aproxima a aprovação do Orçamento do Estado no Parlamento, existe uma teatralização e uma dramatização para que a Esquerda suba a parada, para que o PS seja obrigado a ceder e o Orçamento, cozinhado ainda mais à esquerda, fique pior do que a versão preliminar.”

Será coincidência, mas a ideia-força de encenação/teatralização/dramatização é comum às duas peças. Na segunda, está explícita e claramente atribuída a um protagonista político, a parte interessada na disputa no campo político.

Na primeira peça, a mesma ideia-força surge, contudo, na voz própria do jornalista, suportada numa espécie de muleta discursiva (um perigo frequente na prática jornalística…), que talvez possa ser tolerada como nota de “análise” do próprio jornalista, mas que também pode ser entendida como enxerto opinativo numa notícia.

Trata-se, em todo o caso, de uma situação de eventual contaminação, mesmo involuntária, do discurso jornalístico pela narrativa política, ou de dificuldade de demarcação clara entre o campo jornalístico e o campo político, que deve ser evitada o mais possível. Sobretudo no Jornalismo de Serviço Público.

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