“Colaborador”, o servo do tio Eliseo



No filme “A Vida É Bela” (Roberto Benigni, 1997), há, entre muitas outras notáveis, uma cena que retive como uma subtil mas incisiva advertência sobre a condição de trabalhador e a dignidade que ela reclama em quaisquer circunstâncias.

Trata-se do momento em que a personagem principal, Guido Orefice, interpretado pelo próprio Benigni, se prepara para começar a trabalhar como empregado de mesa (cameriere) no restaurante onde o tio Eliseo (Grustino Durano) ocupa o lugar de chefe de sala e se dedica, por essa altura, a iniciá-lo na função.

Além de introduzir o jovem e fantasioso Guido na taxonomia das iguarias do menu (“a lagosta é crustáceo!”, repete ele), o tio Eliseo vai deixando dicas sobre aspectos práticos da sua missão, mesmo a postura perante os clientes, corrigindo-lhe a excessiva inclinação de saudação à chegada destes.

“Os girassóis curvam-se diante do Sol, mas, se os vires muito inclinados, significa que estão mortos. Um serve, mas não é servo; servir é a arte suprema”, ensina.

Ocorreu-me essa cena ao deparar-me com uma oferta de emprego numa na montra de uma confeitaria portuense através de um anúncio singular:

“E que tal ser e melhor colaborador de balcão da sua rua?”

Sou do tempo em que os empregados de café e de confeitaria e de restaurante, ou outras actividades tinha designações que infundiam neles um certo orgulho (No Porto, chegou mesmo a existir o Clube Nacional dos Empregados de Mesa, mais tarde transformada em Associação Nacional, que organizava divertidas corridas de bandejas nas tardes do dia de S. João), circunscrevendo funções e competências. Empregado de balcão era uma delas.

Fui verificar a actualidade das nomenclaturas. Eis o que se lê na Classificação Portuguesa das Profissões (CPP), de 2010 mas ainda em vigor:

 

5246      Assistente de venda de alimentos ao balcão

5246.0  

Compreende as tarefas e funções do assistente de venda de alimentos ao balcão que consistem, particularmente, em:

• Servir alimentos e bebidas ao balcão

• Indagar produtos pretendidos pelo cliente, apoiar a escolha e registar pedidos

• Limpar, descascar e cortar em fatias géneros alimentícios

• Preparar refeições simples e reaquecer pratos preparados

• Embalar alimentos em porções ou colocar em pratos para servir aos clientes

• Embalar refeições prontas para levar para casa

• Armazenar refrigerantes, saladas e outros alimentos

• Receber pagamentos pelas refeições e alimentos vendidos

Inclui, nomeadamente, empregado de cafetaria e empregado de balcão em restaurantes, cervejarias, pastelarias e estabelecimentos similares.

Não inclui:

• Cozinheiro (5120.0)

• Empregado de mesa (5131.0)

• Empregado de bar (5132.0)

• Vendedor em quiosque e em mercados (5211.0)

• Preparador de refeições rápidas (9411.0)

 

Várias notas

1.ª – A nomenclatura “assistente de venda de alimentos ao balcão” é uma designação modernaça e gira, mas – agora a sério – define um conteúdo funcional concreto.

2.ª – Dessa definição de conteúdo funcional decorre claramente a existência de uma relação de trabalho subordinado.

3.ª – No âmbito da profissão de assistente de venda de alimentos ao balcão, o que a CPP consagra expressamente é a função de empregado de balcão – lá está, “em restaurantes, cervejarias, pastelarias e estabelecimentos similares”.

4.ª – Em nenhuma linha consta essa invenção chamada “colaborador de balcão”

 

Uma palavra que não foi inventada ao acaso

É justamente para a palavra colaborador que pretendo conduzir a reflexão.

Cada vez mais frequente no jargão empresarial e na apropriação jornalística, o termo foi introduzido pela moderna engenharia dos recursos humanos com o indisfarçável fim iludir a verdadeira natureza da relação de trabalho, com o intuir de esvaziar a ideia de que esta se circunscreve à venda da força de trabalho ao patrão em troca de um salário, sem que este signifique uma justa partilha das mais-valias geradas pelo trabalhador.

Trata-se também de diminuir ou neutralizar a própria consciência de classe dos trabalhadores, como forma de enfraquecer a sua organização e desarmar a sua capacidade reivindicativa.

O truque consiste em gerar – e alimentar – a ideia de que o trabalhador já não é um vulgar empregado que se limita a cumprir o seu horário e a executar as tarefas que lhe são atribuídas, em contrapartida do salário, antes assume um papel “colaborativo e construtivo” e comunga das metas e objetivos da empresa (da organização)…

(Esta dicotomia Trabalhador vs. Colaborador é aliás usada em muitas empresas (“organizações”) para catalogar diferentes grupos de pessoas ao seu serviço, sendo usada como arma quando toca a dispensar força de trabalho e como critério para recrutamentos subsequentes.)    

O cúmulo do cinismo na doutrinação desta fórmula é que os seus oficiantes assumem que o “colaborador” – que reconhecem juridicamente como trabalhador por conta de outrem – é induzido (na verdade, compelido) a dar todo o seu esforço, isto é, a submeter-se a jornadas de trabalho intensas e prolongadas, muito para além do horário e, na realidade, muito para além do que o salário que auferem realmente remunera. Por outras palavras: o “colaborador” bem pode partilhar objectivos com o patrão, mas continua muito longe de partilhar dos lucros.

Volto ao tio Eliseo de Begnini: e vejo um servo no “colaborador” destes tempos.

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