Em tempo de encarniçamento moral

Um médico – na circunstância, o director da delegação do Porto do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM – está a ser julgado no tribunal da opinião publicada porque decidiu mandar administrar a onze cidadãos que trabalham numa confeitaria vizinha daquela estrutura, e talvez noutras lojas das imediações, outras tantas doses da vacina contra a covid-19 que sobraram da imunização dos profissionais do INEM e que, segundo alega, não teriam outro destino senão o lixo, se não tivesse feito essa opção.

Ouvi-o e vi-o garantir que o fez na plena noção e consciência de que, moral e deontologicamente, era essa a única opção possível, com a vantagem de contribuir para imunizar um conjunto de cidadãos que a sua estrutura continuaria a monitorizar. Outros (muitos outros?) discordam e há quem o critique com a severidade condenatória que nestes dias de inquietação pandémica muito se tolera e da qual a imprensa se nutre – eu pecador me confesso.

Não sei de ciência certa quem tem razão e muito menos me autorizo a esgrimir certezas. Mas preocupa-me esta caça aos supostos prevaricadores, que, sendo responsáveis por instituições, são suspeitos de se aproveitarem de sobras de doses – cuja janela temporal de aplicação é muito curta, depois de preparadas em seringa – para se fazerem inocular, ou de tomarem decisões pelos vistos discutíveis para darem uso ao que foi feito para ser efectivamente usado e não para “descartar, simplesmente e literalmente deitar ao lixo”, para citar o Dr. António Barbosa.

Já sabemos que as épocas de crise, de grande sofrimento, de penúria de recursos e de grande incertezas são mais susceptíveis à propagação do vírus da mesquinhez para o qual não há vacina. Mas inquieta-me muito que neste tempo, que deveria convocar o melhor que há em cada um de nós de tolerância e de compreensão, nos deixemos sufocar neste encarniçamento moral e reivindiquemos a legitimidade de brandir a espada justicialista sobre tudo e sobre todos.

Também assim que o ascenso do fascismo se vai fazendo.