Quando a objectividade em Jornalismo depende do ângulo, ou do lado...

Desde que me lembro de discutir estas coisas, já lá vão mais de três décadas, que, em relação ao magno problema da objectividade  em Jornalismo, se coloca um exemplo clássico do lead da notícia que relata confrontos entre polícias e manifestantes e vice-versa, ou entre manifestantes e polícias e vice-versa.
Nesse exemplo, talvez demasiado simplista, numa notícia num jornal de esquerda, ou escrita por um jornalista de esquerda, o lead poderia ser
A Polícia carregou ontem sobre (ou reprimiu) uma manifestação de...., em..., contra... causando... mortos e ... feridos
enquanto numa notícia num jornal de direita, ou escrita por um jornalista de direita, poderia ser
Manifestantes contra... envolveram-se ontem com a Polícia, em... , que tentou repor a ordem, resultando dos confrontos ... mortos e ... feridos.
Ainda usando o mesmo exemplo, havia quem experimentasse hipóteses mais neutrais, embora o exercício resultasse um pouco frustre. Se se tentava a possibilidade
Polícia e manifestantes envolveram-se ontem em confrontos..., 
havia logo quem sugerisse como preferível
Manifestantes e Polícia envolveram-se... 
E, que me lembre, nunca se chegou a acordo sobre a fórmula quimicamente neutral.
Ando a matutar neste velho e irresolvido caso a propósito das notícias, dos últimos dois dias, sobre a magna questão dos salários dos trabalhadores do sector público (ah!, e também dos gestores - e vale a pena ver as diferenças...), quando comparados com os do sector privado.
A generalidade dos títulos e dos leads resume-se ao seguinte:
Trabalhadores do sector público ganham mais do que os do privado
Trata-se de uma conclusão (ou de uma opção de conclusão), ou de um enfoque, que, aos olhos de muitos, não pode deixar de surgir associado ao paradigma segundo o qual a virtude estaria na "contenção" do sector privado, em oposição aos "privilégios" do sector público.
Não me recordo de ler nenhum título, nem nenhum lead, apontando aquilo que, para mim e para muitas outras pessoas, corresponde a uma desvalorização objectiva dos trabalhadores do sector privado e dos respectivos vencimentos, como, por exemplo,
Professores e enfermeiros do sector privado ganham menos do que o público 
e contribuindo para colocar em debate padrões de dignidade das profissões e funções.
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