No dia em que o PCP se “afastou” da “Rússia capitalista”
O secretário-geral do Partido
Comunista Português (PCP), Jerónimo de Sousa, dedicou uma boa parte do seu
discurso de encerramento do comício comemorativo do 101.º aniversário da
fundação do partido, no passado dia 6, à invasão da Ucrânia pela Federação
Russa, ao contexto dos acontecimentos e à campanha anticomunista e contra o PCP
que os seus adversários aproveitam para fazer.
As suaspalavras, de clara e inequívoca condenação e de defesa da paz e da solução
negociada dos conflitos internacionais, à luz do direito internacional, da
Carta das Nações Unidas e da Acta Final da Conferência de Helsínquia, foram
seguidas pelos jornalistas que cobriam a iniciativa no Campo Pequeno e nas
redacções.
De acordo com o paradigma relativamente antigo segundo o qual “a rádio anuncia, a televisão mostra e o jornal explica”, com a adaptação moderna que poderíamos reescrever como “o meio electrónico anuncia, a televisão mostra e o jornal (impresso) explica”, seria de esperar:
a) que os jornais (impressos) do dia seguinte evidenciassem algum recuo reflexivo em relação ao que foi dito e ao que foi transmitido instantaneamente, tanto através das televisões e das rádios em directo, como das publicações electrónicas; e
b) que as palavras de Jerónimo de Sousa fossem tratadas com o devido enquadramento, contextualização mais rigorosa e, sobretudo, alguma verificação dos factos e das imputações, uma vez que, em princípio, os jornalistas que o não tenham de memória ou previamente anotado poderão dispor algum tempo[1] para dedicar à tarefa de pesquisar o que sobre o assunto já tenha sido dito pelo orador e/ou pelo PCP.
Terá sido isso o que aconteceu
nos jornais de segunda-feira? Vejamos.
A importância do verbo “afastar”
Compulsando as edições impressas
dos jornais Público, Jornal de Notícias, Diário de Notícias,
iNevitável, Correio da Manhã e Negócios, salta bem à vista
o amplo consenso na opção editorial interpretativa do sentido e do alcance das
palavras de Jerónimo de Sousa, no seu pronunciamento sobre a situação no Leste
da Europa e, mais concretamente, a invasão da Ucrânia pela Federação Russa.
De facto, a quase totalidade ouviu/leu
nelas:
a) uma atitude de “afastamento” do secretário-geral
do PCP e do PCP em relação ao presidente Vladimir Putin e à política russa; e
b) a novidade noticiosa desse facto, como se
tivesse sido a primeira vez que o PCP e a sua direcção se tivessem pronunciado
da forma como o fez o seu secretário-geral naquele comício.
Sabemos que as palavras não são
neutras e têm significados e sentidos com pesos específicos que dão força e
sentido concretos à opção editorial que se pretende imprimir no tratamento de
determinado assunto, ou ao enviesamento com que se condiciona – deliberadamente
ou não – o leitor. É o caso do verbo afastar empregue no tratamento do
discurso de Jerónimo de Sousa.
Afastar,
rezam os dicionários, significa (1) afastar ou fazer desviar; (2) apartar; (3)
distanciar; (4) desterrar (Dicionário da Língua Portuguesa, Porto
Editora, 2010); ou mesmo (5) repelir; (6) inspirar repugnância; (7) dificultar[2];
ou,
densificando, (8) alargar ou aumentar a distância entre duas ou mais pessoas,
coisas… (9) fazer ficar menos próximo ou mais distante; (10) deslocar-se em
direcção oposta; (11) dirigir-se para longe, para lugar distante ou afastado;
(12) fazer deixar ou deixar a companhia, a proximidade, o convívio de alguém;
(13) fazer perder ou perder a comunhão de ideias, de afectos, de ideais; (14)
deixar alguma coisa por desinteresse, enfado; (15) fazer deixar ou deixar de
frequentar, de conviver, de praticar ou de usar habitualmente; (16) recusar
algo por não considerar válido, adequado; (17) livrar ou livrar-se de alguma
coisa, não deixando que se manifeste, aconteça ou se realize; (18) fazer seguir
ou seguir um caminho oposto ou diferente; (19) ser diferente, estar em
desacordo[3];
ou, ainda,
(20) colocar(-se) [alguém ou algo] a certa distância de (pessoa, coisa concreta
ou abstracta) ou colocar (algo) distante de si mesmo; (21) distanciar(-se),
apartar(-se), arredar (-se); (22) tornar (alguém) pouco próximo de; (23)
isolar; (24) tornal (algo) difícil ou impossível de se realizar[4].
O que se lê nos jornais do dia
seguinte
“PCP afasta-se do Governo da ‘Rússia capitalista’”, titula o Público na primeira página. No interior, desenvolve a ideia, também em título:
“PCP
afasta-se da ‘Rússia capitalista’, mas condena ‘escalada belicista’ do Ocidente”
E prossegue, em pós-título, com a
afirmação segundo a qual “o líder comunista demarcou-se do regime de Putin”.
Note-se a insistência redundante na mesma ideia de afastamento, agora com
recurso à forma verbal “demarcou-se”.
No texto, a ideia de afastamento,
de demarcação, é desenvolvida de forma implícita, não porque o jornal sustente
de forma inequívoca que, ao contrário do que agora vinha o secretário-geral
vinha dizer, o PCP estivera até àquele próximo da Federação Russa e das
orientações do seu Presidente/Governo, mas porque parece partir desse
pressuposto. Mesmo que não o demonstre…
Analisando o texto, é forçoso
perguntar: em que se funda tal pressuposto? Na “chuva de críticas aos
comunistas depois de os seus eurodeputados terem votado contra a resolução do
Parlamento Europeu contra a invasão da Ucrânia pela Rússia e pela dificuldade
do PCP em criticar claramente a decisão de Vladimir Putin”, lê-se, na única
alusão a “posições” do partido anteriores ao momento revelador no Campo
Pequeno.
O Jornal de Notícias
não faz chamada de primeira página, mas, no interior, titula:
PCP
afasta-se de Putin, aponta o dedo aos EUA e pede fim das sanções
O pós-título é dedicado às
condições apontadas por Jerónimo de Sousa, como o fim da NATO e a
desmilitarização da União Europeia.
O texto arranca com a ideia-força
do tratamento dado ao discurso: “Jerónimo de Sousa condenou a guerra na Ucrânia
e afastou o PCP do Governo de Putin”, para a recuperar mais adiante:
“‘O PCP não
apoia a guerra. Isso é uma vergonhosa calúnia’, frisou Jerónimo, afastando-se
do regime russo: ‘O PCP não tem nada a ver com o Governo russo e o seu
presidente’”.
Não se encontra no texto nada que
situe o partido em posições antagónicas às expressas no discurso.
O Diário de Notícias
opta, na chamada de primeira página, por um título-citação:
“‘PCP nada
tem que ver com a Rússia capitalista e não apoia a guerra’, disse Jerónimo
antes de criticar NATO e EUA”
No interior, a técnica de
título-citação é retomada, agora de forma um pouco mais desenvolvida:
“‘O PCP
nada tem nada a ver com a Rússia e com o seu presidente. E não apoia a guerra’”
No pós-título, o DN antecipa uma
divergência de contexto em relação aos demais, anotando que “Jerónimo criticou
também as posições da NATO e dos EUA e voltou a chamar estado capitalista à
Rússia, algo que já tinha feito”.
Repare-se na redundância
enfática: (i) “voltou a chamar estado capitalista” e (ii) o que é “algo que já
tinha feito”. Ou seja, o DN reconhece que o PCP não está próximo da “Rússia
capitalista”…
E, todavia, desliza no segundo
parágrafo para o consenso mediático em torno da ideia de “afastamento”,
escrevendo que “o líder comunista aproveitou para se afastar, também, da Rússia
e das políticas de Putin”.
Mas então não estava já manifesto
o distanciamento do PCP? Eis o que o DN acrescenta logo no parágrafo seguinte:
“Jerónimo de
Sousa já tinha dito, no primeiro dia da ofensiva russa na Ucrânia(*), que as
políticas da Rússia atual são de um país capitalista e um ataque à União
Soviética.”
Em que ficamos – se “já tinha
dito”, por que razões se insiste que só agora afastou (“o líder comunista
aproveitou para se afastar…”)?
O jornal Negócios
resume a notícia do comício a uma “breve” de última página, mas não desperdiça
nem um caracter na convergência com os confrades. “Jerónimo afasta PCP de
Putin”, titula, noticiando que o secretário-geral “demarcou o seu partido do
poder russo liderado por Vladimir Putin”.
Finalmente, o Correio da
Manhã, que titula em primeira página “PCP em festa diz que o partido
está a ser vítima de calúnia”, limita-se a citar Jerónimo de Sousa, designadamente
quanto às diferenças em relação às autoridades russas (“’PCP nada tem a ver com
a Rússia’ ou Putin” é o título da peça no corpo do jornal), sendo o único que
não usa os termos “afastar” ou “demarcar-se”.
i, o jornal que não viu,
não ouviu, não leu mas diz que existiu
Já o jornal i comete uma
proeza extraordinária: não publica uma única palavra do secretário-geral do PCP
sobre o tema em nenhuma das duas peças, apesar de ter investido a maior (942
palavras, 5694 caracteres) a esquadrinhar as “posições menos claras” do partido
sobre o assunto.
“PCP. Desconfiados e ofendidos
por se chamar comunista a Putin”, titula. Ao longo do texto, esforça-se por
continuar a vincular o partido às “posições menos claras” (expressão vincada em
pós-título, entre aspas, atribuída ao politólogo António Costa Pinto) do
partido.
O objectivo é perseguido com
recurso a declarações do conhecido politólogo, que aliás reconhece que “o PCP
não declarou posições de apoio a Putin”, à imposição da visão própria do autor.
“Num momento em que a posição do
partido quanto à invasão russa da Ucrânia (…) é criticada como nunca, sendo
equacionada como pró-Putin”, situa ainda no primeiro parágrafo, para, no
arranque do quinto, ir ao ponto que lhe interessa:
“A questão é que,
se o PCP se afirma contra a invasão, o seu voto contra a condenação desta no
Parlamento Europeu, acusando a resolução de ‘impor uma visão unilateral e
instigar à confrontação’, não torna fácil compreender a posição do partido.”
Ora, sendo certo que só se pode compreender o que se conhece,
o que é certo é que os leitores do i ficaram sem conhecer os
esclarecimentos feitos por Jerónimo de Sousa, cujo discurso é completamente
omitido na reportagem.
Mas que falou do assunto, falou! Atesta-o a entrada do texto
secundário (título: “Nacional. Jerónimo decreta morte da política ‘de
esquerda’”):
“Finalizada a parte do discurso de
Jerónimo de Sousa, secretário-geral do PCP, dedicada à invasão russa da
Ucrânia, chegou a vez de apontar as miras internamente (…)”.
Atesta-o também a menção elogiosa (?!) na rubrica
“Semáforo” da última página que, pasme-se!, concede sinal verde ao PCP que
“vincou a sua posição sobre a guerra na Ucrânia”…
(*) O que disse o PCP no
primeiro dia da invasão
Da Nota doGabinete de Imprensa de 24 de Fevereiro de 2022:
“O PCP
sublinha que a Rússia é um país capitalista, cujo posicionamento é determinado,
no essencial, pelos interesses das suas elites e detentores dos seus grupos
económicos, com uma concepção de classe oposta à do PCP. Posicionamento que
teve expressão, nomeadamente, nas declarações de Putin proferidas no início
desta semana que constituem uma grosseira deformação da notável solução que a
União Soviética encontrou para a questão das nacionalidades e o respeito pelos
povos e suas culturas. Importa, ao mesmo tempo, sublinhar que não é expectável
que a Rússia, cujo povo conheceu na história colossais agressões, considere
aceitável que seja incrementado junto às suas fronteiras um cerco militar por
via de um ainda maior alargamento da NATO.”
Adicionalmente, é muito
interessante ver o que oPCP escreveu já em 7 de Março de 2013, ou seja, há nove anos, acerca da
apreciação do Partido Comunista da Federação Russa sobre o regime de Putin –
uma “aliança entre oligarcas e burocratas”; ou como, em 10 de Novembro de2018, Jerónimo de Sousa reputava a Federação Russa como país capitalista.
Mas se procurarem, há mais…
[1] Sabemos,
porém, que na realidade das actuais condições de produção dos media tais
condições nem sempre estão reunidas, já que frequentemente os jornalistas são
chamadas a executar uma sucessão de tarefas e a dispersar a sua atenção por
múltiplos assuntos, o que não deixa de ser um problema sério, desde logo para a
exigência que se lhes coloca em termos de rigor e qualidade do seu trabalho.
[2] Dicionário
Elementar, de Augusto Moreno, Editora Educação Nacional, 1936
[3] Dicionário
da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa,
Verbo, 2001
[4] Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa…Círculo de Leitores, 2002