Na época estival, ninguém leva a mal
As pessoas que seguem com alguma atenção os «acontecimentos»
mediáticos mais bizarros das temporadas estivais – a silly season – costumam enquadrá-los numa categoria especial de
notícias tão tolerável que os
próprios jornalistas parece terem-se acomodado ao fenómeno com escasso juízo
crítico e a opinião pública encara-a com bonomia.
No fundo, passada a época, esgotada a excepção, a vida segue…
Neste Verão, as coisas mudaram bastante de figura, com a dramatização
elevada a um grau superlativo nunca visto da chamada «época de incêndios florestais»,
em consequência do incêndio de Pedrógão Grande e municípios vizinhos, com o trágico
cortejo de mortos, feridos, desalojados e desocupados.
Mas mudaram também (ou sobretudo?) com o particular contexto
de combate político, por estes meses com o acrescido com as naturais fricções
próprias de épocas pré-eleitorais, com a pugna pelos órgãos das autarquias
locais de 1 de Outubro em frenesim crescente.
Neste quadro, a direita ressabiada procura municiar-se com
os mais pequenos incidentes e fantasias para atacar o Governo e tentar minar a
correlação de forças resultante das últimas eleições legislativas.
Os media, e
sobretudo os editocratas, vão-lhe na peugada: não há semana que não traga atado
ao mais insignificante «caso» a previsão apocalíptica de uma rutpura, ou pelo
menos de uma zanga entre os partidos que celebraram as posições conjuntas que
possibilitaram a investidura do governo do Partido Socialista.
O último «caso» é a tão misteriosa lista de vítimas da
tragédia de Pedrógão, que o PSD e o CDS-PP, numa deriva demagógica nunca vista
mas com repercussão garantida nos media,
atingindo o grau zero da decência e do respeito pelo sofrimento das pessoas, decidiram
elevá-lo à classe de crise política da mais elevada gravidade.
A líder do CDS-PP chegou a «admitir» apresentar uma moção de
censura e o novel líder parlamentar do PSD concedeu, com severa solenidade, um
ultimato de 24 horas para que o Governo publicitasse a lista nominal das
vítimas mortais, ameaçando sabe-se lá com que sete novas pragas do Egipto, se a
execrável exigência não fosse satisfeita.
Divulgada a lista pela Procuradoria-Geral da República, lá meteram
os dois a viola ao saco, foram de férias e o ruído mediático do caso serenou,
deixou de ser «caso». Talvez um dia venha a ser caso de estudo sobre o pior das
manifestações da falta de pudor e da escassez de escrúpulos nalguns meios.
Poucos dias antes, caíra o Carmo e Trindade com o anúncio
de uma, pelos vistos, tenebrosa «lei da rolha», através da qual a
Autoridade Nacional de Protecção Civil teria «proibido» os comandantes de
operações de socorro de prestar informações sobre incêndios florestais, que
passariam a ser concentradas em dois encontros diários com a Imprensa (briefings), na própria sede nacional da
ANPC.
O caso foi alçado à categoria de emergência nacional, com o
líder do PSD, na sua eterna e deprimente pose de primeiro-ministro no exílio, a
clamar
contra o Governo e o presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses (ele
próprio uma bem conhecida figura do PSD) a denunciar um ataque à liberdade de
expressão e à liberdade de imprensa. Quase nos comovia…
Apesar de parecer já ter caído, o caso ainda hoje dá que
pensar, sobretudo pelo que poderá ser interpretado como manifestação de uma
certa cumplicidade dos media com o
que não terá passado de uma querela política artificial, favorecida pelo
contexto sazonal de dramatização dos incêndios – este ano exacerbado pelas
ocorrências graves já sobejamente conhecidas.
A generalidade dos media
«foi atrás» da ideia de que fora instituída, realmente, uma proibição de os
comandantes de operações prestarem informações aos jornalistas. No entanto, ela
não
consta do comunicado da ANPC, que estabelece uma rotina de dois briefings com os órgãos de comunicação
social e esclarece que os comandantes operacionais ficam assim mais libertos
para conduzir as operações de socorro – na verdade a sua missão essencial.
De resto, as regras sobre a realização de briefings estão claramente
estabelecidas, há muito tempo, na Directiva
Operacional Nacional que, em cada ano, aprova o Dispositivo Especial de
Combate a Incêndios Florestais (DECIF), mantendo-se no essencial com a mesma
estrutura os os mesmos procedimentos e redacção, inovando apenas nalguns
aspectos operacionais.
Há muito tempo que nessas DON se lê que cabe ao comandante
operacional nacional a competência para «determinar a realização de briefings com os órgãos de comunicação
social» e que aos comandantes operacionais distritais também cabe promover
encontros idênticos nos teatros de operações, «de acordo com as orientações
superiores». Era assim até
no governo de Passos Coelho, agora tão preocupado com a liberdade de
expressão dos comandantes.
Que aconteceu de novo?
Antes da «lei da rolha», um pico crescente de dramatização
mediática dos incêndios, com a presença quase constante de comandantes de
operações de socorro a fazer «pontos de situação» para os «directos»
televisivos e radiofónicos de hora a hora, pouco ou nada acrescentando de novo
e suscitando, não raras vezes, a dúvida sobre a real utilidade dessa
«informação».
Em muitas ocasiões, a constância de comandantes pendurados
nos microfones dos meios audiovisuais correu o risco de transmitir a imagem de
que todo o país estava em chamas.
E talvez não deva descartar-se a possibilidade de, em certos
teatros de operações mais complexos, o excesso de presença de comandantes nos
briefings locais ter prejudicado a condução do combate.
Uma vez «instaurada» a dita «lei da rolha», o que mudou?
Continuou a verificar-se a ocorrência de incêndios, alguns
bastante destrutivos, mas nem as redacções nem os repórteres no terreno
deixaram de ter acesso a informações precisas sobre os acontecimentos, citando
mesmo comandantes operacionais ou de corpos de bombeiros, cruzando-as com os
dados fornecidos através do sistema habitual de comunicação da ANPC, incluindo
os agora famosos briefings-tampão.
Será porventura de concluir que a notícia da falta de acesso
à informação era afinal exagerada e que as denunciadas limitações desse acesso
atingindo especialmente os órgãos de informação local e regional não se
concretizaram. Mas não consta que os media o tenham tornado claro perante o
público.
Para todos os efeitos, incluindo os de propaganda política
que tão fácil e tão acriticamente contamina o campo jornalístico, a «lei da rolha»
continua em vigor. Talvez por desleixo dos jornalistas; talvez por se natural
da época estival. Veremos como correrá o Outono, e o Inverno…