Consensualização jornalística da retórica política
Os meios de comunicação nacionais e internacionais têm
alimentado, nos últimos cinco dias, a ideia de que a Assembleia Nacional
Constituinte (ANC) da República Bolivariana da Venezuela «dissolveu» a
Assembleia Nacional (AN), «reforçando os poderes de Nicolás Maduro».
Como quase todas as mentiras, esta tem a perna curta – tão
curta, que nem a propaganda da coligação oposicionista Mesa de Unidade
Democrática (MUD), ampla e insistentemente distribuída nada menos que no portal
oficial do Parlamento, consegue disfarçá-la.
Na realidade, a AN tem continuado a reunir-se e a tomar
decisões, a esmagadora maioria das quais é composta por deliberações
(«acordos») relativos ao seu mau relacionamento com o Governo, primeiro, e,
depois, com a ANC, ainda a Constituinte não tinha sido (legitimamente,
insista-se) eleita, incluindo apelos a organizações internacionais para que
intervenham na Venezuela.
Não deixa de ser sintomático que entre os numerosos «acordos» aprovados
neste ano não conste nenhum – rigorosamente nenhum – a condenar a recente ameaça
expressa do presidente norte-americano, de recorrer à «opção militar» contra a
Venezuela, ou sequer a decisão da administração dos EUA de aplicar o seu «poder
económico e diplomático» contra o país.
Dos «acordos» e das abundantes e inflamadas
«notícias» disponibilizadas pelo portal do Parlamento – na verdade
transformado em ativíssima plataforma de propaganda da direita contra Maduro e
a Revolução Bolivariana –, não sobressai uma frase, uma palavra, uma sílaba
sequer de salvaguarda patriótica.
A própria MUD, tão lesta a tomar posições sobre tudo quanto
mexa na governação tardou muito a publicar um
comunicado pífio e retorcido, no qual não teve a coragem nem a decência de
referir-se directa e explicitamente à ameaça beligerante e imperialista de
Donald Trump, e muito menos de condená-la sem hesitações.
E a Imprensa, tão generosa a dar guarida à MUD e a fingir
que não vê, ou que não entende, a instrumentalização do sítio oficial da AN ao
serviço da dita coligação, fez de conta que não percebeu tão grave omissão – e
sobretudo demitiu-se da interpelação escrutinadora que deveria ter feito: por
que se calaram o Parlamento e a MUD?
Em qualquer país democrático e seguramente que em qualquer
Estado de Direito Democrático, muitos dos textos publicados no portal do
Parlamento, pelo tom, conteúdo e objectivos, não deixariam de causar
perplexidade, para não dizer sólidas dúvidas sobre se não ultrapassam certas
barreiras penais…
Também é curioso notar que, de actividade legislativa
propriamente dita, os deputados mostrem produção tão avara no que tange à
apresentação, discussão e votação de leis – que é para isso que estão eleitos.
De facto, consultando a página do portal da
Assembleia Nacional relativa à tramitação de iniciativas legislativas (leis)[1],
verifica-se que, neste ano, foi apresentado apenas um projecto e que os 13
levados a discussão em 2016 estão quase todos a «marinar». E a página relativa às comissões
e respectivas actividades também não revela grande esforço em cumprir o
mandato legislativo…
Talvez se possa argumentar que há ali lapsos, erros técnicos
e outros acidentes que «ocultam» aos internautas o afã legislativo da MUD e dos
seus deputados (que controlam o Parlamento), quando estes não andam entretidos
em pelejas contra o Presidente e a mobilizar cortes de estradas e as famigeradas
manifestações pacíficas adornadas com inocentes coquetéis-molotov, explosivos,
lança-foguetes de fabrico artesanal, armas genuínas e outras peças do arsenal
que municiou a violência desestabilizadora.
Pode ser verdade, mas não deixa de ser estranho que os
responsáveis e os técnicos que alimentam e suportam o portal oficial do
Parlamento não regateiem esforços e zelo quando se trata de municiar os canhões
da propaganda da MUD.
Foi então que a Constituinte decidiu convocar a Junta
Diretiva (equivalente à Mesa do nosso Parlamento) da Assembleia Nacional para
uma reunião destinada a acordar os «mecanismos da convivência institucional»,
ao que a dita Junta, aliás composta exclusivamente por deputados da MUD,
respondeu com soberba ausência, «desconhecendo» a ANC e as suas deliberações.
Decidiu a ANC, por unanimidade, assumir «faculdades» para
legislar em matérias de paz, soberania, economia e da primazia dos direitos
humanos, para «neutralizar os ataques e defender a Constituição», segundo as
justificações avançadas nomeadamente pela Mesa da Constituinte, rejeitando
a ideia, propalada pelos media, de
que o Parlamento fora dissolvido.
Lançada pela MUD e logo replicada acriticamente pela
imprensa venezuelana, abertamente engajada com a contra-revolução, e pelos
poderosos media internacionais – das
agências noticiosas (Reuters, Efe, etc.), à BBC e ao El Pais – e repercutida nos meios de informação portugueses, a
expressão dissolução representou mais um anátema lançado sobre o Governo
venezuelano.
Qualquer exercício de análise honesto e independente conclui,
sem grande esforço, que estamos em presença de uma clara tensão entre
instituições, agora em particular entre o Parlamento e a Assembleia
Constituinte. Mas, independentemente das opiniões e posicionamentos sobre essas
tensões, respectivas causas e saídas, não é pedir demais que se considere as
notícias da dissolução nitidamente exageradas.
Se, no campo político, essa ideia tem cabimento legítimo na
retórica da oposição e na gramática da contestação a um órgão – a ANC – que
antecede e transcende a decisão agora em causa, já a sua apropriação pelo campo
jornalístico constitui mais um exemplo de apropriação arriscada do discurso
político e propagandístico que compromete a imparcialidade e o rigor a que os media – especialmente os públicos e as
televisões – estão obrigados.
Assumida em inúmeros órgãos de informação, a afirmação de
que a Assembleia Constituinte «dissolveu» o Parlamento, aliás na linha da
narrativa que vinha das vésperas e do dia da eleição da ANC segundo a qual esta
«terá poderes para dissolver a actual Assembleia Nacional»[2],
faz o caminho de outras construções ideológicas de que os media são instrumentos cúmplices.
Não é nada inocente, por exemplo, o recurso recorrente dos media a expressões e conceitos como «o
regime de Maduro», ou «ditadura», atribuídos pelos próprios sem necessidade de
citação e correspondestes aspas inocentadoras, numa arriscada muleta de consensualização jornalística do discurso e de posições próprias do
campo político e resvalando para a instrumentalização, por vezes descarada.
As abordagens jornalísticas à complexa situação na Venezuela
merecem aturada reflexão, até como hipótese de estudo de caso, sobre a
frequente falência do dever de esforço de rigor e imparcialidade das notícias,
sobretudo quando os órgãos de comunicação social se reclamam independentes, com
a consciência de que talvez não haja palavras neutras e que todas elas possuem
significados e valores muito concretos.
Os jornalistas que fazem as notícias – nas quais, por
imperativo deontológico, é forçoso distinguirem da opinião[3]
– devem assumir a responsabilidade e as consequências das escolhas, velando
pelo crédito profissional, que é o único e muito precioso capital que possuem.
[1] Acedida
em 21 de Agosto de 2017
[2] Público de 31 de Julho de 2017, por
exemplo
[3] Do
Código Deontológico dos jornalistas portugueses: «1.O jornalista deve relatar os factos
com rigor e exactidão e interpretá-los com honestidade. (…) A distinção entre
notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público.»