Comércio de frivolidades
Nos últimos dias, alguns meios de
informação têm dedicado devotada atenção a uma das vedetas mais frequentes da
galáxia mediática, desta vez com a excitante notícia do nascimento – assegurado
pela SIC, de imediato seguida pelas edições em linha de vários jornais e
revistas – de dois filhos gémeos, pelos vistos nos Estados Unidos e através de
uma gestante de substituição.
Que houve de relevante no facto
para justificar a notícia? A avaliar pelo publicado, apenas o facto de, pela
segunda vez, a vedeta, solteira, ter recorrido ao mesmo método, no mesmo país e
fazer segredo da identidade da mãe, condimentado com um, pelos vistos
relevante, «grito de guerra» da dita pessoa largado numa farra de piscina entre
amigos e uma frase proferida em Inglês pelo petiz, que os media mais habilitados em decifrações asseguram tratar-se de uma
saudação - «Bem-vindos Fulana e Sicrano»,
segundo um vídeo que o famoso progenitor publicitou num media social.
Nasceram! Vêm a caminho da
Europa, exultam os media, dedicando
um oleoso desvelo pelo acontecimento, ainda que a certeza do nascimento careça
de «confirmação oficial», os preparativos da viagem dos bebés para a Europa,
trazidos em célere voo pela avó paterna, arvorada a guardiã do clã em cujo
regaço de fama, abundância e felicidade hão-de crescer.
Para apimentar a historieta, há
referências a um putativo quarto irmão também a meses de caminho, por via de
uma namorada grávida (disseram tabloides estrangeiros, há referências a fotos
de ventre um nadinha volumoso, uma mão paternalmente pousada) ausente da
divertida folga da vedeta.
Afinal, onde está a notícia? O
caso dá que pensar, quando a imprensa se rende ao deslumbramento pelo mundo
inalcançável das vedetas e, paralisada num temor referencial, se esquece ou se
demite da discussão jornalística dos problemas que nestes factos, publicitados
amplamente mas de forma tão acrítica, se levantem – de ordem ética e moral, de
natureza jurídica, até política.
Uma publicação ainda esboçou
problematizar a impossibilidade legal em Portugal de a vedeta contratar a
gestação de substituição, por não estar preenchidos nenhum dos requisitos
estabelecidos na lei – e escrutináveis por entidade competente – que legitimem
o recurso a este método de procriação medicamente assistida.
Mas nenhuma terá problematizado se
não terão sido dinamitadas garantias de reserva e privacidade que a lei dá, desde
logo às crianças, quanto aos métodos que tornaram possível o seu nascimento,
abrindo assim o caminho à sua discriminação.
Também não parece que alguma
tenha colocado a possibilidade de estarem a ser postergados direitos
fundamentais das crianças e o princípio da salvaguarda do superior interesse da
criança; e que consequências de tudo isto advirão na vida delas.
Em princípio, as vedetas,
sobretudo os heróis, são sagradas e intocáveis por definição, sobretudo quando
estão na mó-de-cima. Se a tragédia lhes bater à porta, lá se vai o respeitinho:
auto-investidos para remexer vidas e levar a lupa da devassa até ao detalhe
sórdido, os media serão implacáveis.
Em nome da liberdade de informação, mas na realidade à caça de audiências, tudo
serve.
O comércio de frivolidades em que
transformou uma boa parte do ainda chamado jornalismo fez os jornalistas – a
começar por aqueles que detêm responsabilidades editoriais – estarem a perder
aceleradamente o juízo crítico sobre as opções e acerca de noções basilares de
interesse público, relevância social, política, cultural, económica.
Um sobrevoo ocioso, atento quanto
baste, sobre as páginas de futilidades – “Vidas”, “Famosos”, e outras
nomenclaturas esclarecedoras – dão uma ideia bastante impressiva de quanto os media estão a sacrificar no altar das
vendas de publicações e do tráfego na Internet o prestígio do jornalismo e
claudicar em matéria de princípios.
A ideia de que há uma diferença
abissal entre limitar-se a satisfazer a curiosidade alheia e fornecer aos
cidadãos elementos que o habilitem a conhecer melhor o mundo, para melhor o
entenderem e melhor puderem decidir sobre o seu destino, está talvez condenada
a jazer num expositor de peças de arqueologia da profissão.
Os tempos mudaram, dizem. Uma
«famosa» que divulga, na sua página numa rede social, imagens frases insinuantes
tem largas probabilidades de ver o «post» replicado num sítio de um órgão de
informação, por vezes um dia inteiro na página principal, sobretudo se tiver os
condimentos certos – sobretudo se contiverem «referências» sexuais.
Os «jornalistas especializados em
redes sociais» fazem o resto. Limitando-se a «picar» o conteúdo divulgado nas
redes, nada lhe acrescentam do que possa minimamente chamar-se informação,
muito menos de contradita, de problematização, de enriquecimento; apenas apimentam,
num copioso coquetel de adjectivos para espicaçar a curiosidade – «Fulana em topless nas férias», «Sicrana deslumbrante faz produção
ousada», «Beltrana gosta de fazer
sexo na praia»…
O efeito é claro: o que não
passaria de uma partilha banal nas redes, obtém o estatuto de notícia,
atribuindo-lhe artificialmente valor, relevância e importância chancelada nas
versões em linha e nas edições impressas de jornais e revistas.
«Onde está a notícia?», «Que
interesse tem?», perguntam internautas nas caixas de comentários das edições em
linha. E, todavia, estas vulgaridades ociosas fazem o seu caminho ideológico:
enquanto se entretêm com as vidas das vedetas e se deslumbram com o estilo de
vida dos famosos, os leitores não desperdiçam tempo nem energia com minudências
– a distribuição injusta da riqueza, a desigualdade na fruição do direito ao
lazer, os direitos dos trabalhadores em causa.
Onde está a notícia?, que
interesse tem? Há quem leia, há quem goste… Uma «notícia» destas vale pelo
menos uns 10% do tráfego diário nas versões eletrónicas e terá a sua
importância em vendas em banca, sobretudo se tiver garantida chamada à primeira
página com título chamativo – com a palavra «sexo» é garantido! – e uma estampa
feminina.
Vão preocupantes os tempos, na
Imprensa. Ou os gostos e padrões de exigência dos leitores (e dos jornalistas…)
estão em patológica contradição com os níveis nunca vistos de escolarização dos
cidadãos que a democratização do ensino tornou possível alcançar, ou os
leitores realmente qualificados e exigentes estão a afastar-se.
Talvez estejamos a aproximar-nos
de um novo e perigoso paradigma comunicacional, assente fundamentalmente em
dois pilares.
Um, é o do info-entretenimento
para as «massas», disponibilizando-lhes «conteúdos» recheados de frivolidades e
futilidades polvilhadas de informação q.b. que lhes confiram alguma
credibilidade, e generosamente suportados na gigantesca máquina comercial e
publicitária.
O outro, é o do jornalismo para
elites feito por elites, que as primeiras estejam dispostas a pagar do seu
bolso e/ou através de publicidade selecionada, mas também selectiva, com o
risco de impor ainda mais concessões aos jornalistas.
Em qualquer dos casos, a
democracia estaria sempre a perder.