Predadores
«Tenho conhecimento de vítimas indirectas deste processo, de
pessoas que puseram termo à vida, em desespero». Não sabemos por quanto tempo a
afirmação,
peremptória, do presidente do PSD ficará na história do Jornalismo e da
Política, nem se algum dia será caso de estudo por algum praticante de ciências
da comunicação e/ou de ciência política.
Pronunciada ontem, após uma visita aos Bombeiros Voluntários
de Castanheira de Pera, a afirmação de Pedro Passos Coelho ficará seguramente
na memória de muitos como uma chocante expressão do cinismo predador de
sentimentos e da mais descarada mentira, explorando a dor alheia para exclusivo
proveito mediático.
Estiveram bem os jornalistas que lhe pediram que fosse mais
específico em tão graves declarações – quantos?, onde? – e cumpriram o seu
dever de cotejar a afirmação e buscaram informações junto de outras fontes,
incluindo autarquias e Segurança Social.
Mas o gravíssimo incidente, que não teve de Passos Coelho a
exigível retractação, antes um soberbo
pedido de desculpas «por ter utilizado uma informação que não estava
confirmada», segundo se explicou muitas horas depois de desmascarado o embuste,
deve fazer-nos reflectir sobre os elevadíssimos riscos da roleta-russa na qual
alguns dirigentes partidários e o sistema mediático jogam a credibilidade da
política e do Jornalismo.
Talvez a manifesta insensibilidade e a grosseira tentativa
de Passos Coelho de manipular as emoções do público, usando a tragédia do
incêndio de Pedrógão Grande, pudesse ter sido contida se a comunicação política
não dependesse tanto do circo mediático e se o líder do PSD e outras figuras
fossem capazes de reprimir a pulsão do sounbite.
Ganhar-se-ia mais, sobretudo, se os media não cultivassem uma doentia atracção por frases de forte
impacto, cumpliciando-se com os respectivos autores, e, especialmente, se
resistissem ao modelo da comunicação instantânea e os jornalistas tivessem mais
vontade – e também condições! – de privilegiar estratégias de recuo,
ponderação, verificação e contrastação de informações antes de as servir ao
público.
O certo é que o aparato mediático, que funciona
frequentemente em roda livre e indiferente ao freio da responsabilidade ética,
vinha de mais de uma semana de intensa cavalgada, desde que, com violência inaudita,
o incêndio de Pedrógão, rapidamente alastrado aos municípios vizinhos,
arremeteu por montes e vales, ceifou vidas, destruiu famílias, devorou árvores
e casas e estendeu um manto de cinzas por dezenas de milhares de hectares de
espaços florestais e rurais.
Bastou o cenário de destruição brutal, a ideia de caos até
ali inimaginada, a desolação e o sofrimento. No terreno, repórteres aturdidos,
excitados pela dimensão da tragédia, como se fora o caos apocalítico, ou cilindrados
pelo rolo compressor da luta pelas audiências, foram atiçados contra as presas
fáceis e desprotegidas que o teatro de operações lhes oferecia, tentados ou
forçados a mostrar tudo e de forma intensa, impiedosa, desprovida de sentido de
pudor e de respeito pela dor alheia.
Não há memória de tamanho extensão e intensidade de críticas,
no espaço público, ao trabalho de jornalistas no terreno. Uns, porque repetiam
até à exaustão um roteiro inútil de vulgaridades a encher o tempo; outros, porque
estavam a milhas de descodificar e compreender os acontecimentos; outros porque
foram longe de mais na exibição gratuita de cadáveres e na exploração das
tendências mórbidas de espectadores, ouvintes e leitores, que seguramente garantem
proventos comerciais mas estão longe de fazer deles cidadãos verdadeiramente
informados e conscientes.
Na realidade, foram forçados limites de bom senso, de
respeito pelos direitos das vítimas e dos familiares, tendo sido também
violadas normas essenciais da deontologia da profissão.
Houve muito quem exigisse averiguações expeditas e reclamou castigos
exemplares; mas pouco quem propusesse reflexões sobre o contexto brutal do sucedido,
as condições de produção dos media, e
em particular as condições de trabalho dos jornalistas – das várias formas de
precariedade à supremacia da lógica comercial sobre a contenção deontológica,
passando pelas deficiências de formação, pelas vulnerabilidades à voragem da
concorrência e pela escassa autonomia editorial individual, condicionada pela
dependência hierárquica contaminada por conceitos e propósitos estranhos ao
Jornalismo.
Assim como se desvaloriza muito do trabalho bem feito,
profissionalmente empenhado em narrar os acontecimentos com o rigor possível,
em procurar explicar as causas estruturais e conjunturais da tragédia (e foram
tantas e tão graves!), em problematizar o (des)ordenamento do território e da
floresta e a organização da resposta do socorro de emergência, em escrutinar
decisões e políticas públicas, contribuir para o esclarecimento das populações
sobre riscos, prevenção e auto-defesa, ou mesmo em dar rosto e voz a quem
sofreu sem transigir no cuidado ético.
Os acontecimentos intensos e dramáticos destes dez dias e o
aparato mediático montado em torno deles estão recheados de elementos para
análise de desvios e erros – do sensacionalismo dos media à omnipresença de altas individualidades no terreno, em
particular do Presidente da República, incluindo junto do posto de comando
operacional – que seria muito útil concretizar.
Talvez aprendêssemos todos pelo menos um pouco com as lições
do fogo.