Sobre o regime jurídico das instituições de Ensino Superior



Em representação do Grupo Parlamentar do PCP, participei hoje na Conferência sobre o Regime Jurídico das Instituições do Ensino Superior (RJIES), organizado pela Federação Nacional dos Professores (Fenprof). Disse:


Além de agradecer, em nome do Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português, o convite da Fenprof para participar nesta iniciativa, gostaria de dirigir uma saudação à Federação Nacional dos Professores não só por organizar esta Conferência, mas também por estar na origem do desencadeamento do processo de avaliação do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, que há muito deveria ter sido feita.

De facto, deve-se à Fenprof, com a entrega de uma petição, em Maio de 2022, a abertura de um processo avaliação que a própria lei do RJIES – Lei n.º 62/2007, de 10 de Setembro – estabelece que deveria ter sido avaliado cinco anos após a sua entrada em vigor, ou seja, em 2013, isto é, há nada menos de uma década.

Volvida década e meia de vigência do RJIES, são bem claras as consequências deste regime, com particular evidência para a concretização do ataque à gestão democrática das instituições de ensino superior, com uma flagrante diminuição da participação democrática da comunidade académica nos órgãos de governo e gestão das universidades e dos institutos politécnicos, e a sua redução à mera eleição dos conselhos gerais.

A própria composição do órgão conselho geral, o processo de eleição do reitor da universidade ou do presidente do instituto politécnico, a redução da participação dos estudantes, dos docentes e investigadores e outro pessoal nos órgãos de governo, ao mesmo tempo que foram escancaradas as portas a entidades externas, muitas delas de grandes interesses económicos, de presença obrigatória neste órgão, confirmaram-se como decisões erradas.

Tal como foi errada a opção pelo regime fundacional e pelos incentivos à criação de instituições privadas sem fins lucrativos no interior das próprias instituições de ensino superior, visando subtraí-las às regras e procedimentos da contratação pública, em nome da “agilização” e da suposta eficácia.

Ao mesmo tempo abriu-se o caminho à subordinação das estratégias e programas de investigação científica, de produção de conhecimento e de formação de quadros às necessidades nomeadamente da indústria e dos grandes interesses económicos, dando prioridade e primazia quase absoluta à transferência de conhecimento e de tecnologia, muitas vezes em detrimento da investigação fundamental que não pode ser descurada.

Em muitas instituições, incluindo universitárias, é frequente observar-se uma verdadeira obsessão pela angariação de financiamentos através de fundos europeus e até uma competição acirrada na captação se recursos financeiros e registo de patentes.

Há mesmo gabinetes ou equipas de técnicos dedicados à procura de oportunidades de obtenção de verbas, ou a responder a solicitações de investigadores cujos projectos só podem ser concretizados e desenvolvidos com recurso a verbas de origem externa.    

Tal obsessão estende-se à actividade de captação de receitas junto do sector privado, seja a título de parcerias em investigação, seja como prestação de serviços, podendo colocar mesmo em causa a própria independência científica das instituições e dos investigadores e docentes.

Em grande medida, esta dependência, com impacto ao nível da perda de autonomia científica e académica, acentuou e legitimou o subfinanciamento das instituições de ensino superior e dos seus centros e unidades de investigação, desresponsabilizando o Estado e colocando nos investidores e nos próprios estudantes, através das propinas e das taxas e emolumentos, o peso do financiamento.

Por outro lado, campeia nas instituições de ensino superior a precariedade, que atinge mais de 40% dos docentes e quase 90% dos investigadores.

Destacamos a situação no Porto, onde mais de 60% dos docentes são contratados a termo, recibos verdes e outros tipos de, digamos, colaboração – isto excluindo bolseiros. Há mesmo quem trabalhe sem nada receber, na expectativa de algum dia alcançar um lugar ao sol no emprego científico.

São exemplos flagrantes a Escola Superior de Saúde, onde, segundo dados de 2020, a percentagem de docentes e investigadores contratados a prazo era de 80%; ou a Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Porto, com 77%; ou o Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar, com 74%; ou, ainda, a Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto.

É também dramático o uso e abuso de professores contratados, frequentemente em mais do que uma instituição e por períodos artificialmente limitados no tempo (setembro a junho), sem real direito a férias e respectivo subsídio, sem subsídio de alimentação.

Devemos destacar ainda a completa desregulação de horários e até contratação de docentes de forma pouco ou nada condizente com as respectivas habilitações. Verifica-se mesmo a contratação de doutorados como assistentes.      

Em síntese, o RJIES introduziu alterações profundas e negativas, de sentido neoliberal no sistema de ensino superior português, atacando o seu carácter público, dando passos determinados no sentido da empresarialização e privatização do ensino superior público e de mercantilização das instituições públicas, introduziu graves limitações à autonomia das instituições, desferindo um rude golpe na gestão democrática e participada consagrada na própria Constituição da República Portuguesa.

Os passos no sentido de atribuir poder – e poder crescente – a indivíduos e entidades externas (e são bem conhecidos alguns nomes da Banca e do retalho) sobre questões estratégicas e orçamentais, especialmente nas instituições do regime fundacional.

Como o PCP já salientou em diversas ocasiões, o regime fundacional representou uma falácia quanto às supostas facilidades e flexibilidade que era suposto garantir em termos de gestão financeira, patrimonial e de pessoal, ficando claro que a intenção não era, e facto, facilitar a vida às instituições num quadro de serviço público. Na verdade, este regime é indissociável do rumo de desresponsabilização do Estado.

 

Posto isto, o que propõe o PCP?

Desde logo, a eliminação do regime fundacional e a alteração da orgânica e gestão das instituições, garantindo:

·        A verdadeira autonomia na organização e gestão das instituições, designadamente com a eliminação da limitação de contratação de pessoal docente e não docente e, por conseguinte, o fim da precariedade.

·        A participação e gestão democrática democráticas das instituições exigidas pela Constituição da República, envolvendo professores, investigadores, estudantes e funcionários nos órgãos de governo, designadamente com a reposição do senado, composto por representantes dos professores e investigadores, dos estudantes e do pessoal não docente e não investigador, excluindo-se personalidades externas.

·        No mesmo sentido, a consagração do órgão assembleia de representantes, composto por eleitos por e entre os docentes e investigadores, os estudantes e trabalhadores não docentes e não investigadores. 

·        A participação de representantes da comunidade externas à instituição sem que esta fique refém de interesses que lhe são alheios, revogando-se assim a imposição da presença de entidades externas nos órgãos de governo executivos, mas consagrando-se a possibilidade de previsão, nos estatutos das instituições, de existência de um conselho consultivo de ou equivalente que assegure uma relação permanente com a comunidade.

 

Importa também destacar, entre outras propostas do PCP:

·        As relativas à acção social e outros apoios educativos, em termos de apoios de alimentação e alojamento, aquisição e obtenção de material didáctico e escolar, serviços de informação e procuradoria, deslocações e actividades culturais e desportivas.

·        A consagração, para os trabalhadores-estudantes, de épocas especiais de avaliação / exames que permitam a sua distribuição ao longo do ano lectivo e a através da valorização de competências adquiridas na experiência profissional.

·        A efectiva responsabilização do Estado no financiamento das instituições de ensino superior público, tendo por base a transferência do Orçamento do Estado, que deve, evidentemente, ser reforçada.  

 

Senhores professores,

A acção crítica e de denúncia de entorses no sistema científico e de ensino superior, assim como a apresentação de propostas concretas para alterações ao RJIES não são, para o PCP, matéria recente nem de oportunidade. Estão na nossa agenda permanente.

Nesse sentido, renovamos, mais do que a plena disponibilidade para esta luta, o efectivo compromisso do PCP para com um ensino superior público independente, de qualidade, que dignifique as instituições, a sua actividade, os seus docentes e investigadores, o restante pessoal e os seus estudantes.

 

Muito obrigado.


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