Denunciar as armas do fascismo*

 


Eis-nos aqui, de novo chamados à celebração dessa madrugada redentora de há 47 anos, o momento inaugural da extraordinária Revolução cujos momentos exaltantes a memória dos que os viveram evoca com redobrada alegria, transcorrido já quase meio século, e cujas conquistas as gerações dos que se lhes seguiram reclamam como aquisições imprescritíveis.

Ao saudarmos essa madrugada que Sophia de Mello Breyner Andresen “esperava” – “O dia inicial inteiro e limpo // Onde emergimos da noite e do silêncio”, no belo dizer da poeta – transborda dos nossos corações um sentimento de profunda gratidão para com os jovens oficiais, sargentos e praças que, nesse dia 25 de Abril de 1974, pegaram em armas e romperam a longa noite do fascismo, franqueando as portas luminosas da liberdade sem o derramamento de sangue que tamanha ousadia arriscava.

Embora tenha na sua génese um movimento de natureza meramente corporativa, o Movimento dos Capitães que veio a transformar-se no Movimento das Forças Armadas evoluiu inevitavelmente para uma dinâmica libertadora e emancipadora, uma vez tomada a consciência de que a guerra colonial, em que estavam empenhados em permanência quase 300 mil homens em armas, não era apenas insustentável – era profundamente injusta –, e uma vez conscientes os jovens oficiais de que na raiz dessa guerra ilegítima estava a própria iniquidade do regime fascista.

Sim, chamemos-lhe fascista, pois outro nome se não pode dar a um regime que durante quase meio século perseguiu, prendeu, torturou e assassinou, metódica e barbaramente, quantos ousaram pensar diferente, quantos aspiraram à liberdade, quantos resistiram e quantos se ergueram contra a tirania; um regime que aprisionou até o pensamento, que asfixiou a criação literária e amordaçou a expressão das ideias; que humilhou e tentou subjugar intelectuais, impedindo-os de ensinar nas escolas e nas universidades; que reprimiu brutalmente os trabalhadores que se ergueram por melhores salários, jornadas de trabalho menos penosas e melhores condições de vida; que amordaçou e neutralizou cívica e fisicamente muitos dos que denunciaram o atraso social, económico e cultural que durante décadas sufocou a sua pátria; que espiou, prendeu, seviciou e matou os que se levantaram clamando por justiça e se baterem para pôr-lhe termo.

É bom que recuperemos a memória desses factos, que não a deixemos desfalecer nem permitamos que queiram soterrá-los sob a avalancha de novas teorias; é urgente combater quem procura reescrever a História e branquear a ignomínia; é vital barrar a passagem à mentira e à efabulação; é decisivo travar o ascenso do fascismo e denunciar as novas armas ao seu serviço – a desinformação e a manipulação, as tentativas de descredibilização da Ciência, a instrumentalização das frustrações, o acirramento de pobres contra pobres, a falsa moral dos dissimulados e dos impolutos de engano.

 

Quis a sorte que a celebração deste ano da Revolução do 25 de Abril coincidisse com o momento em que se comemora o centenário do Partido Comunista Português, uma efeméride de que se orgulham os militantes comunistas e os amigos do PCP, mas que também honra os portugueses e o Portugal livre e democrático que somos.

Na realidade, não é possível dissociar o êxito do 25 de Abril, as conquistas da Revolução e os avanços democráticos da heróica história do PCP – o único partido que não se dissolveu e o único partido que sobreviveu a duras condições de clandestinidade e à brutalidade das perseguições durante o 48 anos de fascismo – nem tão-pouco da luta, dos sacrifícios e da resistência de tantos e tantos comunistas.

Foi essa luta e foi essa resistência, essa tenacidade e coragem, quantas vezes com sacrifício da liberdade, da integridade física e da própria vida, quantas vezes com a renúncia a uma vida própria e à própria família, que tornaram possível o PCP reerguer-se várias vezes e afirmar-se como poderosa força organizada, influenciar e dirigir o movimento operário, conduzir acções de massas e organizar greves e intervir em plataformas unitárias antifascistas com outras forças e democratas.

Foi essa riquíssima experiência, essa disponibilidade e empenho, que contribuíram decisivamente para que fosse possível aprovar quase por unanimidade (Só o CDS votou contra) a Constituição da República Portuguesa, cujo 45.º aniversário se assinala também com justificado regozijo, justamente porque a Lei Fundamental que enterrou a farsa da Constituição fascista de 1933 foi um produto essencial do 25 de Abril.

Elaborada num contexto dramático de convulsão e perseguições e assassínios, com centenas de atentados bombistas contra sedes do PCP e de outros partidos de esquerda, da Intersindical e de outras organizações democráticas, a Constituição aprovada em 2 de Abril de 1976 foi a Lei Fundamental mais avançada na cena internacional, honrando o compromisso que lhes pedira o então Presidente da República, general Costa Gomes, na sessão inaugural da Assembleia Constituinte, em 2 de Junho de 1975:

“É tarefa para génios gizar uma Constituição revolucionária, tão avançada que não seja ultrapassada, tão adequada que não seja flanqueada, tão inspirada que seja redentora, tão justa que seja digna dos trabalhadores de Portugal.

“Senhores Deputados: Em nome dos mais humildes, das classes mais desfavorecidas, que desejam, na luta do trabalho diário, o avanço da nossa revolução, vos peço que minimizeis os vossos interesses partidários, subordinando-os à consciência afinada pelos interesses maiores da Pátria e do povo de Portugal”. 

Compreende-se bem a saudação que, na noite de 2 de Abril, ao cabo de dez meses de aturado empenho dos deputados constituintes, ao longo de 132 sessões plenárias e 327 de sessões de 13 comissões especiais, o general Costa Gomes fez, nos derradeiros minutos de existência da Assembleia Constituinte, ao promulgar a moderna Lei Fundamental.

Disse então:

“Tem de ser uma Constituição viva, tão viva como o povo que se destina a servir, cujos valores culturais e materiais, superando mesmo arranjos políticos de momento e outros factores conjunturais, tracem no mapa político o rumo certo e real da comunidade."

E, quase a terminar a histórica alocução, acrescentou:

“A Constituição política que temos perante nós será a lei fundamental do povo português, pela qual teremos de pautar a nossa conduta.

“Respeitá-la, observando as regras da democracia, em toda a sua autenticidade e pureza, deve ser honroso acto voluntário de todos os portugueses e dever indeclinável dos responsáveis pela vida nacional, designadamente os partidos políticos.”

 

Quarenta e cinco anos depois, é forçoso reconhecer quão importante continua a ser nas nossas vidas a Constituição da República, não obstante os tratos de polé que tem sofrido. E, sobretudo, é importante salientar – hoje mesmo, aqui mesmo, neste salão nobre destes Paços do Concelho da Maia – que foi a Constituição de Abril que consagrou o Poder Local Democrático.

É por ele e em nome dele que aqui nos reunimos, nesta Assembleia Municipal em sessão extraordinária, honrando o mandato que nos foi atribuído pelo povo, em eleições democráticas e livres, contribuindo, cada um a seu modo e cada qual com as suas limitações, para a contínua e progressiva concretização do primordial dos três desígnios, ou dos três DDD de Abril – Democratizar, Descolonizar, Desenvolver.

Falta, porém, muito caminho para que a democratização e o desenvolvimento sejam realidades mais tangíveis no quotidiano das gentes que jurámos servir. E, todavia, bastará um passo, um passo certo e decisivo, para que os dois objectivos se realizem de forma mais completa.

Esse passo chama-se Regionalização, igualmente consagrado na Constituição da República e condição indispensável ao progresso e ao desenvolvimento do país e das regiões. Mas já tarda demasiado e urge dar-lhe conteúdo concreto e consequente.

Não basta os senhores presidentes de Câmara Municipal mostrarem-se muito indignados com a injusta distribuição de fundos, ou com a entorse centralista na gestão de importantes recursos financeiros.

Tão-pouco nos comove o facto de os senhores presidentes de câmara se apresentarem unidos e unânimes no Conselho Regional do Norte a reclamar metade dos mais de 16 mil milhões de euros da famigerada “bazuca” e quase rasgarem as vestes na reivindicação pela gestão “desconcentrada” de projectos e verbas.     

O que se lhes exige é que sejam coerentes e consequentes.

Neste ano de eleições para os órgãos das autarquias locais, seria bom que todos os partidos que aqui representamos assumissem o compromisso definitivo e firme, sem tibiezas nem hesitações, de cumprir Abril também com a Regionalização. 

 

Viva o 25 de Abril! 


* Discurso na sessão da Assembleia Municipal da Maia comemorativa do 25 de Abril

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