Poesia e touradas: ironias das efemérides


Passam hoje 76anos. A 19 de Agosto de 1936, Federico Garcia Lorca foi assassinado, por fuzilamento, nos arredores de Granada, pelas tropas franquistas. Um dos mais belos e mais conhecidos poemas é a comovente elegia para o toureiro e escritor Ignacio Sánchez Mejías, morto a 13 de Outubro de 1934, em Madrid, na sequência de uma colhida na praça de touros de Manzanares.
Com a devida vénia, publico-o hoje em homenagem ao poeta vítima do fascismo espanhol, sem embargo de pensar, convictamente,  que o espectáculo bárbaro que hoje acontece em Viana do Castelo contra a opinião da autarquia não deveria ter sido tolerado por nenhum tribunal.  

Ei-lo (primeira parte):

I
A COLHIDA E A MORTE

Às cinco horas da tarde.
Eram as cinco em ponto da tarde.
Um menino trouxe o lençol branco
às cinco horas da tarde.
Uma ceira de cal já preparada
às cinco horas da tarde.
Tudo o mais era morte, apenas morte
às cinco horas da tarde.

O vento levou os algodões
às cinco horas da tarde,
e o óxido semeou cristal e níquel
às cinco horas da tarde.
Já lutam a pomba e o leopardo
às cinco horas da tarde,
e uma coxa com uma haste desolada
às cinco horas da tarde.
Começaram os acordes de bordão
às cinco horas da tarde.
Os sinos de arsénico e o fumo
às cinco horas da tarde.
Pelas esquinas grupos de silêncio
às cinco horas da tarde,
e o touro sozinho coração acima!
às cinco horas da tarde.
Quando o suor de neve foi chegando
às cinco horas da tarde,
quando a praça se cobriu de iodo
às cinco horas da tarde,
a morte pôs ovos na ferida
às cinco horas da tarde.
Às cinco horas da tarde.
Às cinco horas em ponto da tarde.

Um ataúde com rodas é a cama
às cinco horas da tarde.
Ossos e flautas soam em seus ouvidos
às cinco horas da tarde.
O touro já mugia por sua fronte
às cinco horas da tarde.
Irisava-se o quarto de agonia
às cinco horas da tarde.
A gangrena já caminha ao longe
às cinco horas da tarde.
Trompa de lírio nas verdes virilhas
às cinco horas da tarde.
As feridas queimavam como sóis
às cinco horas da tarde
e a multidão quebrava as janelas
às cinco horas da tarde.
Às cinco horas da tarde.
Ai que terríveis cinco horas da tarde!
Eram as cinco em todos os relógios!
Eram as cinco em sombra da tarde!
(…)


(Federico Garcia Lorca, “Pranto por Ignacio Sanchez Mejías”, in Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea, selecção e tradução de José Bento, Assírio e Alvim, 1985)

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