Paz, Soberania e Desenvolvimento na América Latina
O Conselho Português para a Paz e a Cooperação (CPPC) realizou no final da tarde desta terça-feira, na Universidade Popular do Porto, mais uma sessão subordinada ao tema "Paz, Soberania e Desenvolvimento na América Latina". Emparceirando na mesa, moderada pela presidente do CPPC, Ilda Figueiredo, com o professor Henrique Borges, velho militante da causa da paz, com Moara Crivelente, da direcção executiva do CEBREPAZ, e com Rafael Reis, do Núcleo do PT em Portugal, participei como segue.
Uma saudação a todos os amigos que aqui estão e um agradecimento ao CPPC por mais este amável convite.
Nesta sessão, proponho-me fazer uma modesta reflexão sobre a
presença da América Latina nos media portugueses e sobre a actualidade
da tenebrosa Doutrina Monroe, enunciada há 200 anos.
Reflexão sobre presença ausente da América Latina nos jornais
Na América Latina e nas Caraíbas vivem 662 milhões de
pessoas, isto é, 8,2% da população do Planeta. Cheia de contradições, a região possui
um potencial económico enorme, e só o MERCOSUL corresponde à quinta economia
mundial, mas está ainda nos lugares cimeiros das desigualdades no Mundo, com a
pobreza a situar-se ainda nos 32,3% da população em 2021 e a pobreza extrema nos
12,9%, segundo dados das Nações Unidas[1].
É da América Latina que provém grande parte do açúcar, do
café, do cacau, do algodão, que consumimos – e que tanto esquecemos de onde vem.
E é também de levar em conta os autores das literaturas
universais nados e escritos em línguas latino-americanas – de Machado de Assis
a Gabriel García Márquez, de Jorge Amado a Pablo Neruda, de Jorge Luís Borges a
Roberto Bolaño, de José Saramago a Laura Esquivel, ou a Andrés Bello...
Se olharmos com alguma atenção para a girândola do Mundo,
talvez descubramos que há um imenso subcontinente e um conjunto de ilhas onde
se falam a língua que é nossa mátria e a língua que nos é irmã, ou parente, que
fervilha intensamente. E também onde se sofre muito – de perseguição e de morte,
como os activistas dos direitos dos trabalhadores, assassinados e massacrados.
E, todavia, se a percepção não me trai – e confesso que ainda
tentei fazer um levantamento estatístico, obra de ciência para a qual sou
incapaz e empresa que muito me exigiria em paciência, tempo e competência – , a
América Latina raramente é tema de jornal, ou pelo menos não é tema com a
frequência e sobretudo com o interesse e a atenção que merece.
Olhamos em voo rasante a actualidade mais recente e o que
lemos são notícias abismadas e essencialmente receosas com o significado das
transformações em curso em países nos quais se verificaram alterações de poder,
com destaque para o Brasil e a heróica e difícil vitória de Luiz Inácio Lula da
Silva sobre o fascistoide bronco e perigosamente extremista que dá pelo nome de
Jair Bolsonaro.
Embora seja justo salientar a atenção dada ao crescimento da
extrema-direita no Chile, na recente eleição do Conselho Constitucional, com o
que isso pode significar de alastramento ou recuperação da extrema-adireita na
região, onde ainda persistem sem castigo os crimes e assassínios pelos seus grupos
paramilitares.
Bolsonaro constitui uma síntese muito interessante do que
representa a extrema-direita num enorme país como o Brasil, a um tempo saudosa
da ditadura militar, isolacionista e negacionista, a ponto de cortar as amarras
com as organizações regionais vitais para a afirmação da autonomia da América
Latina e para a confirmação dos caminhos de emancipação da região face à
hegemonia dos Estados Unidos.
Olhamos as poucas notícias relativas à América Latina, em
geral coadas pelo filtro do eurocentrismo de par com o condicionamento
mediático remoto de Washington, e já não encontramos – é verdade – o entusiasmo
devoto pelo golpismo da extrema-direita venezuelana de Juan Guaidó.
(Abro um parêntesis para fazer notar que
não há uma única notícia, uma crónica, uma reportagem, a questionar o que
aconteceu ao solene ultimatum, de 26 de Janeiro de 2018, da União
Europeia e em particular do Governo português, para a capitulação do governo
venezuelano; assim como para registar que, de repente, desapareceram dos
noticiários os pungentes relatos de fome e doenças que se abateram sobre
Caracas.
E ainda para salientar que ninguém
cuida em escrutinar o que Guaidó e a sua pandilha fizeram a tantos milhares de
milhões que lhe foram entregues pelos países amigos, ou se já foram restituídos
à autoridade Venezuela legítima as largas dezenas de milhares de milhões de
dólares de contas bancárias e outros activos, petrolíferos incluídos,
capturados ilicitamente nomeadamente pelos Estados Unidos, Pelo Reino Unido e
por… Portugal.)
Na realidade – e retomando o fio de conversa que me propunha
seguir – , campeia nos noticiários o preconceito em relação aos governos
legítimos da Venezuela e de Cuba – os dois exemplos clássicos – , assim como quanto
ao projecto de extraordinário alcance que é o Cinturão e Rota (ou Nova Rota da
Seda), uma parceria multilateral que tem a China como motor principal, que está
já a transformar a economia, a sociedade e a vida em praticamente todos os
continentes e que assume na América Latina, já com 20 países latino-americanos,
um papel central e decisivo para o seu futuro emancipado.
Numa época em que, ao contrário do que pretende a Casa Branca
– ocupem-na inquilinos republicanos ou democratas, e vice-versa – e o
pensamento dominante sobre a cristalização da ordem internacional num “modelo
de valores ocidentais” e unicentrado nos Estados Unidos e o seu apêndice europeu, isto é, a União
Europeia, está realmente em marcha e consolidação um Mundo multipolar, é
interessante observar o temor (para além do preconceito histórico) do aparelho
mediático dominante perante os crescentes papel e importância da China e os
avanços que, pesem embora as contradições, os avanços e recuos, vão ocorrendo
na América Latina.
Em conclusão: é indispensável uma atenção mais regular e mais
atenta à actualidade real na América Latina, quanto mais não seja pelas
afinidades electivas tão recorrentemente invocadas nas cimeiras, mas também – e
sobretudo – pela urgência de um outro posicionamento dos cidadãos europeus, e
especialmente os ibéricos, sobre o que está em causa.
Os 200 anos da Doutrina Monroe – actualidade e inquietação
No essencial, o que está em causa são “os interesses dos
Estados Unidos”, que as sucessivas administrações norte-americanas colocam
acima de tudo – e nisso não transigem, sejam democratas ou republicanos –
guardam zelosamente e os seus aliados protegem e incensam obedientemente, hoje
como há dois séculos, com a mesma sobranceria e o mesmíssimo apetite voraz
pelos recursos naturais soberanos dos povos e países da região: hoje em relação
ao lítio e às terras raras, como no passado quando ao ouro e à prata, ao cacau
e ao açúcar e ao algodão.
Saliente-se, de passagem, para se compreender o contexto, a
importância da leitura, ou releitura, da obra magistral de Eduardo Galeano As
veias abertas da América Latina, a qual, embora publicada em 1971[2],
explica com admirável rigor, ainda hoje, as dramáticas mazelas deixadas pelo
colonialismo e pela exploração das potências europeias (primeiro, de Portugal e
Espanha; depois, do Reino Unido, da França e da Holanda), com as práticas
rapaces da divisão internacional do trabalho, da sobre-exploração dos recursos
naturais, do esgotamento dos solos e milhões de vidas de índios escravizados e
de escravos africanos destruídas nas minas e nas fazendas.
Leia-se/releia-se Galeano e compreenda-se que resquícios ficaram,
desde a chamada “descoberta”, ou melhor, da conquista espanhola e portuguesa e
da exploração capitalista pelas potências europeias – e depois pela norte-americana
– das matérias-primas, transformadas na Europa (e depois nos Estados Unidos) e (re)vendidas
a preços astronómicos às colónias/países originárias sob a forma de produtos
manufacturados, portanto com elevado valor acrescentado, colónias e países
sobre-endividados precisamente aos bancos europeus para poderem adquirir os
produtos que não estavam autorizados a fabricar.
É muito importante ter esse quadro em conta no contexto
actual de tensão entre um subcontinente que busca – ou pelo menos num conjunto importante
de países procura fazê-lo – afirmar a sua autonomia e uma superpotência
dominadora que pretende perpetuar a sua hegemonia e continuar a impor a legitimidade
de que se auto-investiu vai já em 200 anos, com a Doutrina Monroe, relativa à
política externa norte-americana[3].
Enunciada perante o Congresso norte-americano, em 2 de Dezembro
de 1823, pelo então presidente dos Estados Unidos, James Monroe, a doutrina define
três princípios basilares de política externa que ainda hoje, com sucessivos
desenvolvimentos, se mantêm actuais, a saber:
- O de que o continente americano deve
ser preservado de quaisquer iniciativas colonizadoras de potências europeias,
face ao desabar dos impérios português e espanhol na região – sobretudo o
espanhol, num desenvolvimento histórico e geográfico diferentes, com
prolongadas lutas independentistas e da guerra hispano-americana);
- O da separação de esferas de
influência, pelo Oceano Atlântico, entre o Novo Mundo (a América…) e o Velho
Mundo (a Europa), à excepção dos momentos e lugares em que estivessem em causa
os interesses norte-americanos na Europa, princípio que ainda hoje prevalece
aliás em qualquer parte do Mundo; e
- O de que os Estados Unidos
entenderiam, e continuam a entender, como ameaça directa à sua própria paz e
segurança qualquer tentativa de qualquer potência europeia de intervir no
Hemisfério Ocidental.
Isto quer dizer, de forma muito sumária, que os Estados
Unidos se arvoravam em principal potência no Hemisfério Ocidental, com o que
isso implica de controlo hegemónico da região, coroando o crescimento
apreciável das suas exportações para as Américas Central e do Sul, precisamente
nas duas primeiras décadas do século XIX, e visando afastar novas de colonizações
europeias, em substituição de Portugal e de Espanha, tendo em conta a
concorrência comercial nomeadamente da Inglaterra, mas não só.
Era evidente que os Estados Unidos pretendiam ser os novos
donos dos recursos, da força de trabalho e até da soberania dos povos da região.
Por outro lado, o enunciado da Doutrina Monroe – em 1823,
recorde-se – ocorre num contexto de sucessivas emancipações e independências na
região. Até então, entre 1804 e 1822, já se tinham tornado independentes oito
países latino-americanos: Haiti, Paraguai, Argentina, Chile, Colômbia, México,
Peru e Brasil.
É com o colapso irreversível do império espanhol, com a
derrota na Guerra Hispano-Americana, em 1898, que os Estados Unidos emergem
como potência capitalista e militar mundial, criando as condições para que, em
1904, com Theodore Roosevelt na presidência, aproveitam para desenvolver a
Doutrina Monroe, invocando os respectivos princípios para justificar a
ingerência norte-americana nas políticas internas de vários países da América
Latina, especialmente nas Caraíbas e no México, e mesmo para os atacar e anexar,
também no Pacífico, como aconteceu com o Hawai, anexado em 1893.
Note-se que mesmo antes da Guerra Hispano-Americana de 1898,
os Estados Unidos já tinham atacado, suprimido e anexado, fora da região latino-americana,
o Hawai; já tinham desembarcado na China uma força de Marinha, Fuzileiros e
Exército (1894/95); na Coreia no mesmo ano; tinham ocupado a China (1898/1900,
durante a Revolução Boxer); desencadeado massacres brutais nas Filipinas (600
mil filipinos mortos; desembarcado e ocupado – até hoje! – a ilha de Guam e, um
ano mais tarde, a de Samoa.
A legitimidade norte-americana para justificar as suas
ingerências, com múltiplos governos fantoches, mudanças de regime, golpes de
estado e invasões e ocupações, no corolário e em desenvolvimentos ulteriores da
Doutrina Monroe, veio a ser adaptada nas doutrinas Truman, enunciada pelo
presidente Henry Truman em 12 de Março de 1947.
No essencial, os princípios da doutrina Truman de política
externa para apoiar “os povos livres livres” contra a ameaça do comunismo, serviram
para justificar o financiamento e o apoio militar nomeadamente ao regime grego
a braços com uma guerra civil com forças progressistas, mas também para lançar,
no ano seguinte, o Pacto do Atlântico do qual veio a resultar em 1949, a NATO e,
ainda para justificar o apoio ao governo do nacionalista de Chiang Kai-shek
contra o Partido Comunista da China e, ainda, a intervenção militar na Coreia,
em 1950.
Vale a pena referir, muito de passagem, o desenvolvimento
doutrinário norte-americano em matéria de política externa sob a administração republicana
de George W. Bush – e mesmo sob a democrata de Bill Clinton – que veio a
justificar as intervenções armadas nomeadamente no Afeganistão e no Iraque e as
operações de mudança de regime em vários países e o apoio (e até intervenção
directa) nas chamadas revoluções coloridas em vários pontos do planeta, a par
da diabolização do Irão, do Iraque e da Coreia do Norte, que compõem o seu tenebroso
“Eixo do Mal”.
Tudo isso nos remete para um lastro histórico de ingerência,
com apoio a golpes de estado e instauração de governos fantoche, mas sobretudo com
o recurso a invasões e ocupações desencadeados em mais de 150 anos, estimadas
em mais de 90, entre 1846 e janeiro de 2020, das quais 48 ocorreram em 16
países latino-americanos e, em nove deles, mais do que uma vez, destacando-se: Panamá,
oito vezes; Honduras, sete; Nicarágua, seis; e México, Cuba e República
Dominicana, quatro[4].
Assim como remete para o estrangulamento das economias
sub-regionais sob o neoliberalismo imposto em muitos países e a dependência
económica sob o domínio hegemónico dos Estados Unidos, mantendo há mais de seis
décadas o garrote do bloqueio a Cuba e boicotando e apropriando-se de recursos
da Venezuela, só para referir dois exemplos de forma sumaríssima.
A importância emancipadora das organizações regionais progressistas[5]
É neste quadro que reveste uma enorme importância regional e
internacional o conjunto de organizações de integração e cooperação solidárias,
em oposição aos instrumentos de hegemonia norte-americana como a Organização
dos Restados Americanos (OEA), aliás em declínio merecido, ou a ALCA – Área
Livre de Comércio das Américas.
De facto, designadamente com as recentes mudanças políticas (e
nomeadamente no Brasil, pelo que não é por acaso a hostilização da
extrema-direita a Lula da Silva, e na Bolívia), foi possível dar um novo
impulso à Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América – Tratado de
Comércio dos Povos (ALBA – TCP) e sobretudo à CELAC – Comunidade de Estados
Latino-americanos e Caribenhos, que o Brasil do ultradireitista Jair Bolsonaro
abandonara mas à qual regressou com Lula.
Assinale-se que a CELAC, contando hoje com 33 estados-membros,
reafirmou a defesa da região como Zona de Paz e apoiou a luta anticolonial de Porto
Rico pela independência, tal como a da Argentina quanto às Ilhas Malvinas,
ainda sob o jugo britânico.
São de salientar também as notícias do regresso do Brasil e
da Argentina à UNASUL – União das Nações Sul-americanas (também abandonada por
Bolsonaro) e das perspectivas da sua reactivação efectiva, assim como a
aproximação da cimeira de chefes de Estado que Lula da Silva pretende organizar
em Brasília, no dia 30 deste mês.
Podemos dizer que á uma América Latina antes da primeira eleição
de Lula da Silva em 2002, e outra depois, tendo em conta o papel essencial que
desempenhou na integração regional, quer com a criação das organizações como a
CELAC e a UNASUL, face à hegemonia dos Estados Unidos e mesmo da Europa, ao
defender a preservação da autonomia face ao bloco comunitário no contexto das
negociações do acordo Mercosul-União Europeia.
Algumas palavras finais, de reflexão, sobre as dificuldades e
desafios que enfrentam vários países da região:
- O Brasil, com a complexa gestão de
contradições e procura de equilíbrio entre interesses antagónicos no âmbito da
política de múltiplas alianças, que jogaram aliás um papel fundamental na traição
de que Dilma Rousseff e o próprio Lula foram vítimas no golpe que a destituiu;
- A Colômbia, de Gustavo Petro, dada
a dificuldade em mudar radicalmente o paradigma económico, político e social
assente numa poderosa classe terratenente, que possui a esmagadora maior parte
das terras, e numa poderosa burguesia, que dificultam a integração dos
guerrilheiros – uns porque não alcançam terra para cultivar; outros porque não
têm emprego na indústria e no comércio; e
- O Chile, cujos resultados das
eleições para o Conselho Constitucional terão surpreendido muitos com a vitória
da extrema-direita, mas que na realidade já seriam expectáveis, tendo em conta
as raízes do modelo neoliberal que tarda a descolar.
Não se pode esquecer que o Chile foi de facto o laboratório –
à escala real – do neoliberalismo e que os “Chicago boys” eram nada menos do
que os jovens estudantes de economia chilenos cujos estudos foram concluídos na
Escola de Chicago e que vieram a ocupar postos decisivos.
De facto, ainda antes de o general Pinochet derrubar o Governo
de Salvador Allende, em 1973, já o aparelho do Estado estava tomado, ao mais
alto nível em termos de direções – e, depois, de ministérios, pelos rapazes
encarregados de aplicar as teorias económicas neoliberais.
[1] Fonte: https://statistics.cepal.org/portal/cepalstat/dashboard.html?lang=es
[2] A primeira
edição portuguesa é da Antígona, em 2017
[3] Como
obra de referência insuspeita, seguem-se nesta intervenção as entradas relativas
às doutrinas Monroe, Truman e Bush, da Enciclopédia das Relações
Internacionais, de Nuno Canas Mendes e Francisco Pereira Coutinho
(Organização), Publicações D. Quixote, 2014
[4] Segue-se aqui a breve cronologia de invasões e ataques dos Estados Unidos, embora incompleta, organizada pelo jornalista e ex-professor brasileiro Urias Rocha, transcrita em https://www.brasil247.com/blog/cronologia-das-invasoes-norte-americanas-no-mundo. Tendo no entanto a acrescentar mais uma, em relação a Cuba: a invasão da Baía dos Porcos, em 6 de Abril de 1961, que o autor omite.
[5] Esta parte do texto incorpora o terceiro tópico da intervenção, pré-escrita mas não lida na intervenção inicial, circunscrita aos dois primeiros, e a reconstituição das notas do autor na ronda final da mesa, após as questões muito pertinentes do auditório.
____________________________
A foto foi furtada, com a devida vénia, ao Alexandre Silva, se não me levar a mal