Saramago jornalista: a imprensa como espaço de resistência*
Questão prévia, que talvez se justifique aclarar para começo de conversa, poderá ser a de saber se José Saramago foi realmente jornalista. Jornalista, tanto no sentido corrente do termo – aquele que recolhe informações e as difunde sob a forma de notícia, reportagem, entrevista ou opinião –, como na definição plasmada no quadro normativo.
“São
considerados jornalistas aqueles que, como ocupação principal, permanente e remunerada,
exercem com capacidade editorial funções de pesquisa, recolha, selecção e
tratamento de factos, notícias ou opiniões, através de texto, imagem ou
som, destinados a divulgação, com fins informativos, pela imprensa, por agência
noticiosa, pela rádio, pela televisão ou por qualquer outro meio electrónico de
difusão”, reza logo o n.º 1 do artigo 1.º do Estatuto do Jornalista (Lei
n.º 1/99, de 1 de janeiro).
Independentemente de saber-se se, pelo menos
em certos momentos da sua carreira pelos jornais, a par ou não de outras
ocupações ligadas à edição, à tradução e à criação literária, Saramago o fez
como “ocupação principal, permanente e remunerada” – requisito essencial ao
reconhecimento do estatuto profissional – antes de tornar-se o escritor
profissional que fez questão de ser, é assim que o reconhecemos também:
jornalista por inteiro.
Confrontado por vezes com a questão, o próprio
declara, como numa entrevista à revista Playboy transcrita na entrada
relativa ao dia 28 de Julho de 1998 do Último Caderno de Lanzarote:
“Nunca
me considerei um jornalista (…). Nunca fiz uma entrevista, uma reportagem,
nunca escrevi uma notícia”.
E, todavia, trabalhou efetivamente em jornais,
nos quais cultivou esse género maior do jornalismo que é a crónica –
inicialmente no já extinto jornal A Capital, nas secções “Rua Acima, Rua
Abaixo” e “Deste Mundo e do Outro”, 61 dos quais (anos de 1968-69) vieram a ser
reunidas num volume a que deu o segundo título.
Outras 59 crónicas publicadas em A Capital
e no Jornal do Fundão, compiladas no livro A Bagagem do Viajante,
no início dos anos 1970, a par do seu trabalho como editorialista no também já
desaparecido Diário de Lisboa (importante também ler ou revisitar o
volume As opiniões que o DL teve) afirmam Saramago nesse género
jornalístico que distinguia as publicações periódicas, numa época ainda assim
sem o freio do pensamento único e a camisa de forças intelectual do consenso.
“A crónica, antigamente, era a flor das
redacções, o botão de rosa na lapela, ou o cravo, ainda inocente e sem
veleidades de emblema, marcescendo em lhe chegando a hora”, virá a comentar o
autor na crónica inaugural, em 18 de janeiro de 1985, da sua colaboração em
cinco números com o semanário O Jornal renascida no livro Folhas
Políticas.
Vale a pena prosseguir a citação:
“A
crónica, então, dava pano para abas e mangas: arroubo lírico e sentimental, em
geral campestre, mensagem críptica à imortal bem-amada, confidência intimíssima
ao ignoto leitor, desabafo vertido no ombro paciente da coluna, em corpo oito,
às vezes itálico. E também servia, a crónica, para zagunchar disfarçadamente o
fascismo local, os chefes e os subchefes, ousando pôr claro as palavras
autorizadas, baixando à entrelinha quando a prudência fosse maior que o
atrevimento, mais tarde com grandes demonstrações de alegria infantil se o
censor de miolo trôpego, ou sonolento, ou simplesmente ignorante, deixava
passar sem emenda o atentado…”
Gloriosos tempos esses? Não creio que possamos
ler nestas palavras de José Saramago uma sílaba que seja de nostalgia. “Como
jornalista, ou simples colaborador soube o que era a indignação de ver
esfaqueadas palavras que escrevi e ideias que expressei” escreve a 16 de Junho de
1998 no Último Caderno de Lanzarote.
Trata-se de uma consciência antiga, de um
percurso de resistente, de intervenção e luta concreta, que não se esgota na
sua contribuição pessoal, antes se projecta na participação solidária e
colectiva.
Em 1971, Saramago é um dos subscritores, com
António Borges Coutinho, Figueiredo Filipe, Maria Isabel Barreno e Modesto
Navarro, de um corajoso abaixo-assinado contra o projecto de Lei de Imprensa,
no âmbito da Comissão Nacional de Defesa da Liberdade de Expressão.
E em 1973 apresenta no III Congresso da
Oposição Democrática, realizado em Aveiro, a tese “Para o estudo da situação da
Cultura e da Informação em Portugal”.
Se sob as condições de severa censura à
imprensa (como aos livros, ao teatro e ao cinema), Saramago encontrou espaço de
resistência ao fascismo, o jornalista e escritor não descurou, antes prosseguiu
com afinco, com a Revolução de Abril, a intervenção cívica e política através
dos jornais, vindo a assumir as funções de director-adjunto do Diário de
Notícias em abril de 1975, cujas crónicas e artigos (96) estão reunidos no
volume “Apontamentos”.
Foi um dos “jornalistas suspeitos de serem militantes
ou simpatizantes do PCP”, como consta no Decreto-Lei do Conselho da Revolução, saneados,
num processo revanchista e vergonhoso, na sequência do golpe
contra-revolucionário do 25 de Novembro.
O saneamento revestiu a forma eufemística de “dissolução”
da Direcção do DN, à qual Saramago reagiu com humor, como assinala Ribeiro
Cardoso numa obra fundamental para a compreensão da ofensiva no campo da
comunicação social pública – O 25 de Novembro de 1975 e os Media Estatizados.
“É geralmente sabido que o Conselho da
Revolução me dissolveu. Não existo, portanto, como director-adjunto do Diário
de Notícias, o que bem se compreende perante a já existência de outro
director-adjunto: é lei elementar da física que dois corpos não podem ocupar o
mesmo lugar”, escreveu em nota enviada então às redacções.
“Dissolvido” mas não rendido nem vencido,
Saramago retoma o seu posto de combate na sua trincheira na imprensa em múltiplas
outras publicações periódicas, incluindo no Brasil e em Espanha, fiel aos seus
ideais de comunista e à defesa dos valores de Abril ainda hoje de grande
actualidade, como o demostra o precioso acervo de 80 artigos reunidos no livro Folhas
Políticas publicado em 1999.
O último texto, “Alegra-te, esquerda”,
publicado na revista Visão em 8 de outubro de 1998, culmina uma série de
artigos centrados nos problemas da esquerda e da Europa, assim como na
responsabilidade de Mário Soares como travão sistemático a avanços que se
impunham.
Já em Cadernos de Lanzarote (V), na entrada de
26 de maio de 1997, escrevera:
“A
peremptória declaração de Mário Soares de que hoje ‘ser de esquerda é avançar
no sentido da Europa’, mostra até que ponto andam desoladoramente confundidas
as ideias (e também as pessoas) a que continuamos a chamar de esquerda”.
Nesse artigo, Saramago interpela a esquerda –
ou talvez melhor – uma certa esquerda que então (só então?!) “circulava de alma
confusa, a puxar ao centro a esconder bandeiras, perdida de rumo e emurchecida
de convicções”, então como agora…, para desferir a estocada certeira:
“Pensa
a esquerda que as suas ideias (se ainda tem as mesmas…) de socialismo ou de
social-democracia são compatíveis com a liberdade total de manobra das
multinacionais e dos mercados financeiros, reduzindo o Estado a meras funções
de administração corrente e os cidadãos a consumidores e clientes, tanto mais
dignos de atenção quanto mais consumirem e mais docilmente se comportarem?”
Insistamos na data: 8 de Outubro de 1998.
Quanta actualidade aqui vai!
A leitura, ou a releitura, das Folhas
Políticas sugere um roteiro de coerência que não trai, nem as obrigações de
observação e análise do jornalista que realmente era, nem o empenhamento do
militante que não poderia deixar de ser.
Há, no início da crónica inaugural da sua
participação no semanário Extra, onde
teve intervenção fecunda, a 23 de Julho de 1977, uma interrogação retórica que
dá muito que pensar, nos nossos dias, mediaticamente dominados por uma elite
editorial que cultiva ciosamente um consenso implícito quanto à agenda e à orientação
das notícias e comentários, padronizando as abordagens e afunilando o olhar
sobre o mundo.
Ei-la:
“Diante
desta primeira folha, pergunto-me: valerá a pena?”
E, poucas linhas após, concretiza com indisfarçada
verrina:
“Valerá
a pena aumentar as nutridas fileiras dos comentadores políticos nacionais com
alguém que não faz vida de bastidores ministeriais nem de passos perdidos?”
Valeu – e muito! – a pena o regresso de
Saramago às páginas dos jornais, desde logo como voz resistente contra uma
deriva – ou melhor, uma escolha consciente – de que o Partido Socialista não só
nunca se arrependeu, mas também aprofundou, para proveito da direita que
rapidamente a cavalgou e com ela recuperou terreno.
“Por onde começar? Por um Partido Socialista
que faz tão pouco caso da Constituição que votou como do programa que
apresentou aos eleitores? Pelo avanço de uma direita insolente e eufórica que
de tudo vem beneficiando, desde a indecisão do Governo até cumplicidades de
alto coturno?”, questiona Saramago, incisivo, perfurante.
A defesa das conquistas da Revolução do 25 de
Abril, do socialismo e do comunismo – sim, do comunismo! –, da Reforma Agrária
e da condição dos trabalhadores operários do Alentejo espezinhada pelo PS, pela
Lei Barreto e pela sisudez cúmplice do presidente da República de então com a
violência da destruição dos seus sonhos, esperanças e luta, face à reabilitação
dos grandes agrários e à recuperação dos latifúndios (leia-se, a propósito, o verdadeiro
libelo acusatório que é o artigo “Recado para João Basuga, alentejano”), é
matéria de análise constante no Saramago das Folhas Políticas.
E é-o à luz desse património maior que era – e
continua a ser – a Constituição da República Portuguesa, essa mesma que o PS
votou e que Ramalho Eanes, tal como outros que se lhe seguiram, jurou defender
e fazer cumprir, mas que por vezes ignoram.
“Olhe-se para este Governo que socialista se
diz e tem no seu rótulo, obrigado a respeitar escrupulosamente a Constituição e
tratando-a como mero ‘farrapo de papel’”, desafia Saramago, noutro texto.
“Onde está a revolução, quando é verdade que o
Governo Constitucional desrespeita a Constituição?”, pergunta noutro ainda,
para mais adiante salientar que a Lei Fundamental, cujos tratos de polé com as
revisões de 1982 e seguintes lucidamente previu, era “a mais avançada
Constituição deste lado da Europa, nosso orgulho e bandeira”, mas “vai sofrendo
o destino de tantas outras grandes ideias: fica a palavra que a diz, o resto
quase nada”.
Há, nestas palavras de Saramago, um sabor
amargo de desilusão, sem deixar de regressar amiúde à mesma pergunta: por que
razões se não cumpre e respeita a Constituição?
“São
perguntas que eu faço. A resposta esperam-na aqueles para quem a Constituição é
tão importante como a palavra de honra. Pelo menos.”
Esta constância no apego à Constituição, à sua
defesa e valorização, ajuda-me a convocar à memória a vibrante exortação do
general Costa Gomes, então Presidente da República, na sessão inaugural da
Assembleia Constituinte, a 2 de Junho de 1975:
“É tarefa para génios gizar uma Constituição
revolucionária, tão avançada que não seja ultrapassada, tão adequada que não
seja flanqueada, tão inspirada que seja redentora, tão justa que seja digna dos
trabalhadores de Portugal.
“Senhores Deputados: Em nome dos mais humildes, das
classes mais desfavorecidas, que desejam, na luta do trabalho diário, o avanço
da nossa revolução, vos peço que minimizeis os vossos interesses partidários,
subordinando-os à consciência afinada pelos interesses maiores da Pátria e do
povo de Portugal.”
É certo, como
observa José Saramago, que a nossa Lei Fundamental “seria muito diferente se a
redigissem os triunfadores do Outono de 75”, e que sofreu desde 1982 amputações
dolorosas nas conquistas e esperanças de Abril.
Mas, tal como o
PCP, sempre a valorizou como essencial à nossa vida. E nesse elemento, entre
muitos outros, também reside a actualidade do seu pensamento e da sua
intervenção intelectual comunista, que genuinamente não renunciou a ser.
Na resposta à
jornalista Alexandra Lucas Coelho para o jornal Público, em outubro de
1998, à pergunta “Que significa hoje ser escritor comunista?”, Saramago
escreveu:
“À margem das distinções mais ou menos subtis que
poderíamos fazer entre ser-se um escritor comunista e um comunista escritor
(não é certamente o mesmo, por exemplo, ser-se jornalista comunista e comunista
jornalista…), creio que a pergunta não vai dirigida ao alvo que mais importa
(…). Tiremos o escritor e perguntemos simplesmente: ‘Que significa hoje ser
comunista?’”
Nos tempos que
correm, só aquele parêntesis de Saramago introduzindo a hipótese de uma
reflexão distinta quanto à condição de jornalista comunista versus
comunista jornalista justificaria pelo menos um simpósio.
Mas eu, parte
interessada no assunto, rendo-me à evidência de ter-vos maçado já demasiado – e
por isso me despeço.