Anacronismos antidemocráticos

Há uma pergunta porventura incómoda para os cultores do consenso em tempos de luto monárquico: se não questionam a legitimidade dos regimes monárquicos e se consideram a monarquia do Reino Unido e da Irlanda do Norte uma democracia perfeita, incomodar-se-ão pelo menos com o anacronismo do ritual em curso com a proclamação do novo rei e a antidemocrática submissão do Parlamento ao monarca?

Vejamos:

Nos termos da proclamação, com a morte da rainha Isabel II, “a coroa do Reino Unido e Irlanda do Norte recai única e exclusivamente no príncipe Carlos”. Ou seja, a sucessão é imprescritivelmente dinástica – Carlos passa a rei por ter nascido filho de rainha; e a questão do regime não está em discussão, nem sequer na Irlanda do Norte.

Carlos III converte-se em “único senhor”, como “rei, chefe da Commonwealth e defensor da fé”. Isto é, em pleno século XXI, há um senhor que, além de chefe de estado, é automaticamente “chefe” de uma comunidade de países independentes que não discute sequer a sua liderança e concomitantemente líder indiscutível de uma igreja (Anglicana), somente por ser rei e não porque tal igreja lhe reconheça mérito, competência e capacidade para a conduzir.

Ainda hoje, a Câmara dos Comuns teve de jurar lealdade ao monarca, pois só poderia funcionar, e portanto legislar, após tal acto de vassalagem. Numa democracia como a portuguesa, é o Presidente da República que jura a Constituição perante o Parlamento, perante o qual toma posse.

Amanhã, o novo rei será proclamado também na Escócia, País de Gales e Irlanda do Norte, numa afirmação de anacrónica suserania, sem que os seus povos possam escolher um chefe de estado próprio.

O que há, afinal, de democrático e mesmo de racional em tudo isto?


(Foto da cerimónia de proclamação extraída do sítio oficial da Família Real)

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