Filões e agendas
1. Por estes dias, corre nas redes sociais uma
insistente torrente de interpelações aos media,
questionando-os sobre a ausência – ou pelo menos a insuficiência – de notícias
aprofundadas e sistemáticas sobre os processos relativos a alegada fraude com fundos
europeus na Tecnoforma, envolvendo duas altas figuras do PSD; de alegada
corrupção para a atribuição de «vistos gold», com a participação de figuras do
topo da Administração do Estado e até um ministro do PSD; e de alegada
corrupção na compra de submarinos à Alemanha tutelada pelo anterior presidente
do CDS-PP.
Não é que as notícias não existam, como demonstra, por
exemplo, uma
investigação publicada há duas semanas pelo Público,
mas as inúmeras mensagens veiculadas evidenciam uma insatisfação com a
cobertura jornalística conferida àqueles assuntos, em contraste com a
prolongada, e nalgumas fases intensa, divulgação de elementos, mesmo que por
vezes irrelevantes, do processo da «Operação Marquês». A comparação sugere que
certas personagens do teatro político são mais penalizadas pelo escrutínio
mediático do que outras, o que suscita perplexidades ao público.
Haverá nos media
uma agenda selectiva – sabe-se lá por que razões –, que fixa um alvo e não o
larga até deixá-lo exangue, neutralizado e sobretudo morto civicamente,
enquanto outros gozam de uma quase condescendência, para não dizer de uma
espécie de imunidade mediática? E por que será que alguns meios dedicam uma
atenção sistemática, quase militante, a certos alvos, mas praticamente
negligenciam outros? Que razões justificarão uma e outra práticas?
Uma explicação possível, percepcionada do lado de dentro do
aparelho mediático, será talvez o facto de um determinado processo constituir
um filão de tal maneira suculento, mesmo antes de a acusação estar deduzida, e
de circunstâncias nem sempre claras terem facilitado a fuga, a violação do
próprio segredo de justiça, terem tornado irreprimível a vontade de noticiar e
incontrolável o fluxo das notícias. Em contrapartida, outros filões
esgotaram-se mais rapidamente e os processos terão caído em certa rotina. Será
assim tão simples?
Quaisquer que sejam as justificações, parece evidente que os
cidadãos estão longe de compreender o fenómeno, permanecendo uma nebulosa que
alimenta uma percepção de parcialidade dos media
e até de existência de agendas próprias, ora de denúncia, ora de ocultação.
Talvez seja altura de arrepiar caminho e tornar mais transparentes as opções
editoriais.
2. Há uma semana, a Impresa Publishing, de
Francisco Pinto Balsemão, aproveitou a alienação das suas revistas para
despedir – ainda que sob a capa da fórmula, igualmente violenta, mas muito
eufemística, da «rescisão por mútuo acordo» - um conjunto de jornalistas e
outros trabalhadores que não seriam transferidos para o novo empregador,
encetando mais um processo de «reestruturação».
O
acompanhamento dado pelos media ao
assunto foi escasso e contido, como acontece com frequência com os
«emagrecimentos» nas empresas do grupo Balsemão, reduzido ao indispensável e
sem qualquer esforço sistemático de acompanhamento do caso, em contraste com o
que acontece em relação a outras empresas, sobretudo quando estas são «da
concorrência». Também neste caso, os cidadãos indagarão as razões desta espécie
de bipolaridade corporativa.
É
provável que, na conjuntura económica e laboral dos media, funcione algum mecanismo de contenção, mais ou menos em
razão do temor de que o mal alastre a outras empresas e atinja – ou volte a
atingir – outras redacções, induzindo uma prudência frágil que consiste em
desvalorizar (e silenciar…) o mal dos outros para o que o nosso se não ponha a
caminho. Mas também não se descarta a hipótese de uma certa acomodação à ideia
da inevitabilidade das «reestruturações» e das suas consequências para os
jornalistas e outros trabalhadores do sector.
Talvez
os leitores, os ouvintes e os espectadores mais atentos sejam levados a
reflectir sobre este problema, bem como a questionar-se sobre a falta de
consciência crítica entre os jornalistas, a ponto de quase desistirem de manter
– ou mesmo colocar – na agenda dos media
os problemas da sua própria profissão e das suas empresas.
É
certo que, ao contrário do que pensam muitos cidadãos, os jornalistas não detêm
o poder definitivo sobre o conteúdo dos órgãos de informação aos quais vendem a
sua força de trabalho, e que é sempre mais fácil publicar notícias sobre as
fragilidades da «concorrência» directa do que garantir um acompanhamento
sistemático do sector que ponha em evidência, perante o público, os problemas
do sector. Mas é grande o risco de se limitarem mais a fazer o «jornalismo do
patrão» do que o jornalismo para os cidadãos.
3. Na passada sexta-feira, vários órgãos de
informação alimentaram, em paragonas e repetidas peças, a ideia de que «os
salários no privado vão descer em 2018», devido ao fim do pagamento dos
subsídios de férias e de Natal em duodécimos. Várias delas enredaram-se nas
mais bizarras acrobacias de aritmética na tentativa de demonstrar que tal
medida «vai retirar rendimento mensal»[1]
aos trabalhadores do sector privado (e do público, não?).
O
raciocínio, muito colado à posição do PSD, que se opôs à justa medida proposta
pelo PCP, assenta numa convicção tão errada quanto perigosa – a de que os
trabalhadores «deixam de receber em duodécimos», como se esse fosse o direito a
preservar.
O
raciocínio escamoteia os factos essenciais:
-
Os subsídios de férias e de Natal estão fixados na lei para serem pagos por
forma a que os trabalhadores possam satisfazer as despesas inerentes ao gozo
daquele período e das festividades sem sacrifício do seu rendimento mensal,
tendo assim durante décadas, e essa é que é a normalidade;
-
Em 2013, o Governo PSD/CDS-PP, depois de ter roubado aos trabalhadores da
Administração Pública e do sector empresarial do Estado, os subsídios de férias
e de Natal, impôs o pagamento em duodécimos aos trabalhadores do sector privado;
-
Se pretendessem receber os subsídios nas alturas devidas e não em duodécimos,
teriam de notificar expressamente (aliás em prazos muito curtos) as empresas, constituindo
indesmentível maioria esmagadora (entre 2% e 20%, segundo as fontes) aqueles
que optaram por manter a «normalidade»;
-
Aquela imposição tinha por objectivos gerar nos trabalhadores a ilusão de que
os seus «rendimentos mensais» não estavam a ser afectados pelas medidas fiscais
gravosas, nomeadamente a sobretaxa do IRS, e, a prazo, acomodá-los à ideia da
«desnecessidade» de tais subsídios e à sua extinção.
O
raciocínio adere muito à agenda da direita e do patronato, em relação à qual os
media estão demasiado sensíveis, tão
largo e profundo é o seu divórcio em relação ao mundo do trabalho e aos
problemas dos trabalhadores. Talvez seja útil aos editores e aos proprietários
de meios de informação reflectir por que razões os trabalhadores se vão divorciado
deles…
[1] Um
exemplo extraído do Correio da Manhã, cuja manchete era exactamente «Salário do
privado desce em Janeiro»