A Síria e a diabolização nos media
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Bashar al-Assad na entrevista concedida à Europe1 e TF1 (Foto: agência SANA) |
Numa entrevista
concedida, em Fevereiro, pelo Presidente da República Árabe Síria às estações
francesas Europe1 e TF1, um dos jornalistas pergunta a Bashar al-Assad: «(…) Há
muitas pessoas, no nosso país em particular, que dizem que o Estado Islâmico,
de um lado, e o seu regime, de outro, são as duas faces de um mesmo mal, que
procura reprimir toda a forma de expressão democrática livre no país. Que lhes
responde?»
Sem deixar
de responder, Assad atalha com um esclarecimento prévio: «Em primeiro lugar,
nós não somos um regime. Somos um Estado com instituições.» Tal expressão,
sustenta o presidente, reeleito em 2014 por sufrágio universal e directo,
corresponde à «demonização» da Síria e do governo e do Exército sírios «pelos
principais media e os meios políticos
ocidentais».
O incidente
ilustra bem os processos de diabolização de governos através dos media, de que Bashar al-Assad é um dos
alvos permanentes, com a generalidade dos grandes meios de comunicação social utilizando
sistematicamente expressões como «o regime sírio», «o regime de Damasco», «o
regime de Assad» e gerando a ideia de que não possui legitimidade para
governar.
Basta
procurar, num motor de busca na Internet, nas línguas que nos são mais próximas,
as expressões «el régimen sirio», «le regime syrien», ou «the syrian regime». Logo
brota uma imparável torrente de títulos, notícias e comentários difundidos
pelos mais conhecidos e mais prestigiados, digamos assim, órgãos de comunicação
social.
Em
contrapartida, se procurarmos algo como «regime saudita», «el régimen saudi»,
«le regime saoudien», ou «the saudi regime», já a fonte electrónica quase seca,
pouco ou nada nos devolve de títulos, notícias e comentários da grande imprensa
que classifiquem a Arábia Saudita. É um exemplo, o Qatar é outro.
Não podemos garantir
de ciência certa a origem do rótulo atribuído à Síria e ao seu governo, mas é
inegável que ele tem também a chancela da CIA, cujo catálogo de países em linha
– The World Factbook – classifica
o país, quanto ao tipo de governo, como presidencialista (e é-o, de facto)
e «regime altamente autoritário».
E, no
entanto, reconhece que tanto o Presidente como o Parlamento são eleitos através
de sufrágio universal e directo pelos cidadãos com mais de 18 anos –
exactamente como nas democracias onde as instituições também existem e
funcionam.
Não é o que
se passa na Arábia Saudita, onde vigora uma «monarquia absoluta», segundo reconhece
a própria CIA. Mas a secreta norte-americana não ousar reputar sequer como
regime um país onde o rei – por definição não eleito e de sucessão hereditária
– se está nas tintas para a democracia e nomeia os 150 membros de um Conselho
Consultivo que só remotamente se poderia considerar Parlamento.
A consigna regime está lançada e estabelecida.
Cúmplices ou acríticos, conscientes ou inconscientemente telecomandados, o que
muda pouco, os media repetem-na até à
exaustão, matraqueando a palavra frequentemente em todos os parágrafos, amiúde
repetindo-a.
Há peças jornalísticas
inteiras, na imprensa internacional como na portuguesa, sem utilizarem uma
única vez, nem que fosse como alternativa para evitar repetições, fórmulas
independentes e imparciais, como «o governo sírio», ou «o Presidente Sírio». Para
os media, como os centros políticos
ocidentais, as próprias Forças Armadas da República Árabe Síria são simplesmente
«as tropas do regime».
Parecendo
coisa de somenos, a fórmula mostra mais uma situação de convergência do discurso
dos media com a narrativa do campo
político, que põe em causa a independência e a imparcialidade da informação com
a apropriação de uma semântica ideologicamente marcada e uma evidente tomada de
posição.
A menos que
o jornal tal ou tal assuma um posicionamento ideológico – ou uma orientação
editorial – favorável a um dos campos em confronto, ou mais ou menos hostil, no
caso, ao Governo sírio, é muito discutível, senão mesmo absolutamente
desaconselhável, que uma publicação que se pretenda «de referência» faça uso
reiterado e ostensivo de expressões marcadas como aquela.
Mas o uso e
o abuso campeiam, mesmo nas publicações que se reclamam imparciais. Quem diz um
jornal, diz uma estação de rádio ou de televisão que transmitam em sinal
aberto. Porque, utilizando uma frequência do espaço radio-eléctrico por
definição escasso, estão por isso obrigadas ao dever de isenção.
Mas lemos,
ouvimos e vemos «o regime sírio…», até nas estações de Serviço Público,
portuguesas incluídas. Há uma desculpa: é assim que as agências noticiosas se
referem ao governo de Assad, o que remete para um problema bem mais grave.
Por
natureza, uma agência de notícias é um órgão de informação de primeira linha,
que serve um número indeterminado de clientes, sobretudo órgãos de informação (de
segunda linha, que se dirigem ao público em geral), cuja produção jornalística
incorpora, com frequência quase exclusivamente, os despachos por ela
distribuídos.
Em grande
medida, são as agências de notícias que definem a agenda, estabelecem
conceitos, fabricam consensos e padronizam mesmo a informação distribuída pelos
media destinados ao público.
Por isso, as
notícias de agência devem ser de tal modo rigorosas, objectivas e imparciais,
despidas de qualquer adjectivação, imunes aos preconceitos e precavidas contra
armadilhas da semântica que sirvam, sem reservas, de «matéria-prima» de pureza
indiscutível para uso de rigorosamente todos os seus clientes –
independentemente das respectivas orientações.
Ao enunciar
perante o público os «valores»
da sua estratégia[1], a Agência Lusa proclama «os princípios que orientam a produção
noticiosa», como o «rigor», a «isenção» e a «pluralidade», garantindo
designadamente «distanciamento e independência perante os factos e opiniões
divulgados» e «neutralidade perante as forças políticas».
No
respectivo Livro
de Estilo[2],
a agência, de capitais maioritariamente públicos e à qual está cometida a
tarefa de assegurar o direito à informação, assume como norma a imparcialidade:
«A agência não toma partido em conflitos políticos ou
armados, nem em questões sociais, laborais, religiosas, culturais ou
ideológicas. Não tem opiniões, simpatias ou antipatias. É rigorosamente factual
e equidistante.
(…)
Do mesmo modo, a busca de isenção exige o maior rigor na
escolha do vocabulário. Devem ser abolidas as palavras com carga política ou
ideológica, os termos pejorativos ou elogiosos que marquem posições de repúdio
ou de preferência (…)».
Caso para
dizer «bem prega Frei Tomás». A agência Lusa é um dos órgãos de informação portugueses
que mais recorrente e insistentemente planta o termo «regime» nos seus textos
sobre a Síria.
Talvez
seja por contaminação de outras agências e dos media de referência cuja credibilidade e rigor parece heresia
questionar. Mas nunca é tarde para reflectir sobre os efeitos do mimetismo como
via perigosa de disseminação de manipulações e propaganda, bem como sobre o
risco de cumplicidade numa campanha sistemática de diabolização do Governo
sírio que compromete a sua independência.