"O Detetive Historiador", arrimo de jornalistas e manual de escrutínio público
A minha apresentação esta tarde na Feira do Livro do Porto:
Já
não tenho palavras para re-agradecer à Natal Vaz a honra que me dá em
voltar a apresentar este Detetive
Historiador – Ética e Jornalismo de Investigação, de Oscar Mascarenhas.
Reincide
a Natal no convite e nos riscos correspondentes; e reincido eu em aceitá-lo,
apesar da escassa competência para tamanha empresa, como se não tivesse sido
atrevimento bastante aceitar o generoso convite do autor para prefaciar a obra,
publicada postumamente.
Agradeço
também aos presentes, pela companhia e pelo interesse nesta iniciativa, que
aliás compete com um soberbo domingo de fim de Verão.
O
meu/nosso camarada José Gomes Bandeira, com quem também aprendi do que sou como
jornalista e do que fui como dirigente sindical, nutria séria aversão àquela
espécie de muleta da cortesia forçada, entretanto caída em desuso, mesmo entre
os mais velhos: “Fulano de Tal, que faz o favor de ser meu amigo…”
Numa
bela tarde, já lá irão quase três décadas, naquele riso escarninho com que
pontuava algumas das suas observações incisivas sobre coisas da vida, o Zé
Bandeira fez-me ver que tal expressão o irritava por remeter para a esfera
calculista do negócio mesquinha o que imaculadamente tem de ficar no território
franco da estima.
Ocorre-me
esta lição sempre que me dou conta da enorme dívida de gratidão que tenho pela
amizade franca e fraterna que o Oscar teve por mim e que eu, receio, não terei
sido capaz de retribuir na mesma medida e, sobretudo, não terei expressado
publicamente como era justo fazer.
Fazendo
a apresentação deste livro no Porto, peço-vos licença para salientar uma das
mais expressivas e públicas demonstrações dessa amizade, recordando a denodada
defesa que de mim fez, em vigorosos artigos publicados no âmbito da polémica
então instalada na Imprensa, quando, em 2002, a pretexto da minha presença nas
listas da CDU para as legislativas por este círculo, se instalou uma estranha
discussão sobre os limites à participação política dos jornalistas, em geral, e
dos dirigentes do seu Sindicato, em particular.
Muito
mais importante do que essa dimensão singular e pessoal da peleja em que o
Oscar então se empenhou com indomável galhardia, eram, porém, o seu amor sem
concessões à liberdade, a generosidade sem limites dos seus gestos, a comovente
fraternidade que impregnava as suas relações de camaradagem e animavam as suas
lutas, a sua vasta cultura e a sua profunda convicção na força transformadora
do debate de ideias e da defesa de valores que distinguem os homens e as
mulheres de carácter.
Foram
essas características que deram aos jornalistas e ao seu Sindicato o privilégio
da sua militância apaixonada e rigorosa e permitiram projectar no espaço
público um vasto acervo de preocupações e de reflexões com a ética da vida, a
deontologia profissional e as leis da arte do Jornalismo, granjeando prestígio
para o Conselho Deontológico e afirmando reconhecida autoridade, plasmada até
por tribunais superiores, para os pronunciamentos deste órgão sobre a conduta
dos jornalistas, incluindo os não sindicalizados.
O Detetive Historiador –
Ética e Jornalismo de Investigação
integra o essencial da dissertação de mestrado em Comunicação, Cultura e
Tecnologia da Informação no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa em
Novembro de 2009, bem como elementos do programa seguido por Oscar Mascarenhas
nas aulas de Ética e Deontologia do Jornalismo que leccionou na Escola Superior
de Comunicação.
No
entanto, a obra transcende em muito a barreira do labor académico do autor, ao
condensar e ao densificar o produto apaixonante das suas reflexões e
questionamentos sobre as práticas profissionais dos jornalistas, os problemas e
também as armadilhas que o exercício exigente da profissão coloca, vertido em
inúmeros comunicados do Conselho Deontológico de que foi redactor, intervenções
em colóquios e debates, bem como em porfiadas discussões, em muitas das quais
tive a honra de emparceirar.
Sobretudo
num tempo em que a avidez das audiências, o rolo compressor da rentabilidade e
o afã de êxitos mesquinhos tudo relativizam, fazendo baixar a guarda em relação
aos padrões de exigência e de escrúpulo ético, este livro constitui um arrimo
fundamental na jornada dos profissionais e um precioso auxiliar do escrutínio para
o público.
Nesse
sentido, gostaria de salientar, na obra escrita e na memória das intervenções
de Oscar Mascarenhas, a centralidade do valor da Lealdade, como condição
contratual irrevogável na relação dos jornalistas com as suas fontes, com as
pessoas sujeito e objecto do seu trabalho e com o público.
O
“manual de autodefesa” dos jornalistas que o Oscar tantas vezes mencionou está
afinal plenamente configurado neste Detetive
Historiador.
Não
é apenas um Vade Mecum auxiliando a
negociação do estatuto de fonte confidencial; suportando e fundamentando a
defesa do sigilo profissional; reflectindo sobre meios e métodos leais de
recolha de informações; ponderando a origem e as motivações de informações; e
enunciando direitos “inesperados” e talvez controversos, como o do direito dos
entrevistados a lerem as entrevistas antes da publicação.
Na
verdade, o autor não desiste de convidar os jornalistas a prever e sobretudo a prevenir
os efeitos, tantas vezes devastadores, das informações que colocam no espaço
público.
“As
normas deontológicas (…) só podem ser lidas através do filtro la lealdade,
colocando-nos na pele do outro para antecipar o que vamos publicar”, escreve,
exortando-nos a realizar sempre a “contraprova da lealdade e a
interrogarmo-nos: ‘É leal?’”.
Uma
das actividades jornalísticas em que tal problema se coloca de forma mais
intensa é a cobertura de aspectos da vida de personalidades com projecção
mediática, sacrificando com frequência a esfera da privacidade ou mesmo da
intimidade, que Oscar Mascarenhas procura prevenir através daquilo a que chamou
“contrato de visibilidade” implícito no estatuto de figura pública:
“São situações públicas as que, pela
natureza intrínseca do acto, o seu autor sabe ou deve razoavelmente saber que é
escrutinável por qualquer pessoa”.
Mas,
afinal, o que é legitimamente escrutinável e o que resulta em sacrifício criticável
desse reduto último da soberania da individualidade? Talvez ajude a reflexão recuperar
do este amargo protesto de Miguel Torga, lavrado no “Diário”:
“Coimbra, 13 de Maio de 1990 – A
imprensa, a rádio e a televisão dão-me às portas da morte. O telefone não pára
de tocar. Os jornalistas, cruéis, teimam, insistem, não desanimam. Querem,
sadicamente, saber pormenores. Se morro, se não morro. E vão adiantando diagnósticos.
Enfarte, hemorragia cerebral, paralisia. Neste mundo desapiedado, não há mais
lugar para o sofrimento íntimo, recolhido, que os bichos ainda podem sentir na
toca. Agora já ninguém é dono de si e do seu pudor. Somos públicos e baldios. À
hora menos pensada, por artes do primeiro bisbilhoteiro profissional que nos
saia no caminho, perdemos toda a densidade humana e ficamos espectrais e sem
duração na leviana fugacidade de uma notícia.”
O
problema da tensão (e será sempre inevitável?...) entre a protecção das esferas
da privacidade e da intimidade e o direito-dever de informar é um tema muito
presente nas reflexões e textos que o Oscar Mascarenhas produziu ao longo da
sua empenhada jornada como dirigente sindical, como colunista, como provedor do
leitor (“Diário de Notícias”) e como professor.
O
produto amadurecido dessas reflexões está evidentemente vertido nesta obra, mas
muito especialmente num dos estudos que a compõem. Significativamente
intitulado “Ver sem olhar – o jogo de sedução na praia, lugar aberto ao
público, espaço enorme de intimidade”.
Trata,
fundamentalmente, dos limites do território da inviolabilidade, que os
jornalistas tendem a julgar de geometrias susceptíveis de variações à medida das
urgências da “cacha”, do vale tudo da luta pelas audiências e da escassez de
escrúpulos.
Eis
como, nessa metáfora da praia e num belíssimo axioma que não me canso de
repetir, o Oscar arruma o assunto da ponderação das aparências de licitude e da
ilusão do poder do jornalismo no embate com os direitos dos protagonistas:
“À medida que os corpos se despem na
praia, menos públicos ficam, mais íntimos são”.
Uma
das mais interessantes abordagens neste Detetive
Historiador, abrindo inovadoras perspectivas de debate e de reflexão sobre
os direitos das pessoas objecto do trabalho jornalístico e as restrições
ético-deontológicas dos profissionais, é a discussão do direito do visado a conhecer “mais
completamente o que vai ser publicado”, quando o resultado da investigação jornalística
vai ser fixado em livro ou em documentário.
Estamos perante um “sobressalto” não resolvido,
não só acerca do problema do exercício do direito que o autor enuncia, mas
também da enorme dificuldade material – senão impossibilidade – de aplicar às
publicações unitárias e aos filmes o instituto do direito de resposta, nos
tempos e nos modos legalmente prescritos para as publicações periódicas e para
os serviços de programas de rádio e de televisão.
Mais do que uma questão jurídica muito
interessante, estamos perante uma vicissitude ética no contrato de lealdade que
vincula o jornalista às suas fontes e aos protagonistas dos seus trabalhos, qualquer
que seja a natureza e a periodicidade do medium
através do qual os exterioriza e difunde. É que, neste caso, corremos o risco
de ruptura.
Como resolvê-la? Recoloquemos a pergunta retórica
do Oscar – “É leal?”
Tal como a prudência e caldos de galinha nunca
fizeram mal a ninguém, é avisado, no Jornalismo, não temer excesso de cuidados.
“Em matéria de garantias de lealdade, antes sobrem do que faltem”, escreve o
Oscar, na medida em que “ética é lealdade e é uma garantia de que toda uma
investigação respeitou as partes envolvidas”.
Nem
de propósito, é notícia por estes dias a publicação próxima de um volume de
memórias diarísticas de um ex-director de dois semanários, cujo conteúdo
repelente, traindo à falsa-fé a confiança de confidentes, directos e
indirectos, vivos e mortos, e estocando a honra de confidenciados – segundo as
relevações já antecipadas por dois jornais – está a gerar justa inquietação e
mesmo indignação.
Por
que razões convoco um tema sujo nesta assembleia?
Não
é seguramente para dar publicidade à coisa, embora reconheça que contribuo, a
contragosto, para espicaçar a curiosidade.
É
para manifestar a minha inquietação com a elevada cotação que, pelos vistos,
vão alcançando no mercado dos escândalos as pelo menos alegadas confidências
íntimas traiçoeiramente recebidas nos cadernos de arvorados directores de
jornais.
Estou
certo de que, se ainda estivesse cá, o Oscar haveria de proclamar, com todo o
vigor da sua militância pela nobreza da profissão, que tal pessoa, erradamente
apresentada como jornalista (não, não possui carteira profissional) não é dos nossos.
É
também por estas que o Oscar nos faz tanta falta!