A verdade verdadinha de Caracas
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Manifestação bolivariana (foto: avn.inf.ve) |
Caracas, 1 de Setembro de 2016. Dezenas de milhares de
pessoas manifestam-se para pressionar a realização de um referendo para a
revogação do mandato do Presidente da República da Venezuela, Nicolás Maduro,
convocadas pela coligação de oposição Mesa de Unidade Democrática (MUD). Noutro
ponto da cidade, dezenas de milhares de pessoas manifestam-se em defesa do
governo legítimo e da paz e contra o golpismo, convocadas nomeadamente pelo
Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV). São factos.
Um olhar sobre a narração daqueles factos pelos Media sugere
a adaptação de uma conhecida anedota nos meios forenses sobre a posse da
verdade: há a verdade dos convocantes; a verdade – muito variável – dos meios
de informação; e a verdade verdadinha. Por muito imparciais que se arroguem e
por muito «órgãos de informação de referência» a que pretendam alcandorar-se, a
verdade é que não há nódoa de parcialidade que lhes não macule o prestígio de
que se reivindicam.
Vem isto a propósito da denúncia que a ministra venezuelana do
Poder Popular para as Relações Exteriores, Delcy Rodríguez, fez no dia
seguinte, numa reunião com o corpo diplomático, acusando as «empresas
transnacionais de comunicação»: «Pretendem silenciar a realidade na Venezuela,
querem vender mentiras (…) e a verdade verdadeira é que o povo chavista de
Caracas saiu à Avenida Bolívar a enchê-la de paz, garantindo a democracia»[1].
Horas antes, a embaixada venezuelana em Madrid apresentava
um vigoroso protesto contra a inaceitável ingerência do governo espanhol[2] – aliás em funções de mera
gestão desde há mais de oito meses –, cujo Ministério para os Assuntos
Exteriores e da Cooperação manifestara o seu apoio à manifestação da oposição
e, sem qualquer grão de hesitação diplomática, participava nas pressões para a
aceleração do processo referendário[3].
Por outro lado, a representação venezuelana denunciava a
cobertura parcial e tendenciosa de «alguns meios (de comunicação social)
espanhóis, que ampliaram a manifestação da oposição e invisibilizaram a
mobilização do povo bolivariano a favor do Governo” e pedia «à imprensa
responsável uma cobertura equilibrada que dê conta do apoio popular ao
Governo».
Seria abusivo o pedido de cobertura «equilibrada», isto é,
dando espaço às duas partes e relatando as duas manifestações?
Quem acompanhou, nesse dia, as versões em linha dos meios de
informação espanhóis, ou puder recuperá-las[4], poderá confirmar, sem
favor, que nomeadamente o influente diário «global» El País privilegiou com excessos de entusiasmo a causa da oposição.
E que, só quando já não a podia silenciar completamente, é que se referiu à
concentração bolivariana, mas em escassas linhas e sem deixar de apoucar a
dimensão e o conteúdo da manifestação revolucionária.
Por muito que tente disfarçar os seus compromissos e
interesses, estes, de resto, em franco progresso na América Latina, e por muito
que o seu director alegue que «o único delito que comete é informar sobre a
Venezuela com certa frequência»[5], a torrente de notícias e
editoriais de El País não dissimula o
evidente desequilíbrio, o ostensivo posicionamento anti-chavista e a adesão a
uma retórica agressiva tão favorável à desestabilização do país almejada pela
direita.
Ao preparar, de véspera, os leitores para a “Toma de
Caracas”, a versão em linha do jornal titulava: «A oposição exibe a sua força
nas ruas»[6]. No texto, assumia que “a
ocasião serve, sobretudo, para uma demonstração do renovado músculo eleitoral
da oposição».
A metáfora foi retomada
na madrugada seguinte, proclamando em título «A oposição da Venezuela exibe
músculo e pressiona mais Maduro»[7], dando largas ao
argumentário dos que não se conformam com a legitimidade do mandato de Nicolás
Maduro e ajudando, com mapa apropriado, a indicar os locais de concentração e a
progressão previsível das forças contra-revolucionárias na “tomada de Caracas”.
Para amanhã, dia 7, a oposição convocou marchas sobre a sede
e as delegações do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), pressionando a aceleração
do pretendido referendo revogatório. Uma semana depois, tomará «todas as
cidades» da Venezuela por um período de 12 horas; duas semanas após, todo o
país – ameaça – será «tomado» por 24 horas.
Beneficiando dos seus justamente intocáveis direitos e
garantias, a imprensa internacional lá estará – muita exibindo o músculo da
manipulação, renunciando sem pudor a qualquer compromisso sério com a verdade e
o equilíbrio informativo.
(Publicado em AbrilAbril)
[3]
http://www.exteriores.gob.es/Portal/en/SalaDePrensa/Comunicados/Paginas/2016_COMUNICADOS/20160905_COMU253.aspx
[4]
http://internacional.elpais.com/internacional/2016/08/31/actualidad/1472678247_339960.html;
http://internacional.elpais.com/internacional/2016/09/01/america/1472720082_825606.html;
http://elpais.com/elpais/2016/09/01/album/1472730454_874600.html;
http://internacional.elpais.com/internacional/2016/09/01/america/1472757570_951109.html