A verdade verdadinha de Caracas (parte 2)
Regressemos à Venezuela.
Dia 7 de Setembro – recordam-se? – deveria registar «grandes marchas» sobre a
sede e as delegações do Conselho Nacional Eleitoral (CNE), com as quais a Mesa
de Unidade Democrática (MUD) pressionaria nas ruas a divulgação das «condições»
para a realização de um referendo revogatório do mandato do Presidente da
República, Nicolás Maduro.
Dia 14 de Setembro deveria ser o dia da «tomada» de todas as
cidades da Venezuela pela MUD, pelo período de 12 horas, que o governador do
estado de Miranda e candidato presidencial derrotado em 2013, Henrique
Capriles, quis transformar em ocupação por nada menos de 24 horas[1].
O que aconteceu? Quase nada, a despeito de uma entusiasmada
campanha de mobilização assumida pelos Media comprometidos com a oposição e a
direita golpista e apostados na derrota da Revolução Bolivariana, como se não
bastassem as vicissitudes internacionais e os obstáculos estruturais que ainda
não foi possível ultrapassar.
O que aconteceu no dia 7 foi um grande fracasso da MUD. As
suas acções foram de tal modo inexpressivas que a imprensa venezuelana afeiçoada à oposição
(El Nacional e El Universal, por exemplo) teve sérias dificuldades em alimentar a
«onda» nas respectivas edições electrónicas.
«A oposição venezuelana estende os protestos de rua às
províncias», anunciara, horas antes, em título, o «diário global» El
País, cuja implantação na América Latina promete generosos réditos ao grupo Prisa e não é alheia a uma agenda
mediática hostil ao ascenso e êxito de forças progressistas na região.
Contribuindo «jornalisticamente» para a mobilização, o
jornal acrescentava em pós-título: «A Mesa de Unidade Nacional convoca uma nova
jornada de marchas em todo o país depois do êxito da tomada de Caracas». A
bitola, de resto muito forçada, estava marcada: era forçoso superar o «êxito».
Ao longo do dia, El
País, que já não disfarça a sua campanha contra a Revolução Bolivariana nem
o apoio ao derrube de Maduro, não difundiu em linha qualquer notícia, pequena
que fosse, sobre o desenvolvimento das «marchas em todo o país». Não tinha
como.
O tema é tratado na edição
do dia: «O chavismo sai à rua em resposta à mobilização da oposição»,
titula, tentando enfatizar uma dimensão que as «marchas» não tiveram.
Habitualmente generoso em cifras para as «mobilizações» da
MUD, El País quantifica a jornada com
a expressão «milhares» – e apenas uma vez no texto, que aliás não contempla uma
nota de reportagem sequer sobre os acontecimentos, incluindo sobre as
concentrações do Grande Pólo Patriótico, apesar de estas serem o «gancho» da
notícia.
Hábil na engenharia de títulos de tese[2], o que El País pretendia era vincar o objectivo
do seu militante ministério editorial aliado da direita venezuelana. O
pós-título diz tudo: «A Mesa de Unidade marchou hoje nas províncias
venezuelanas para insistir com o Conselho Nacional Eleitoral para que agilize o
referendo para revogar Maduro».
El País não está
só na campanha internacional e tem parceiros de peso. Dois dias antes, The Wall Street Journal, cujos
interesses são evidentemente coincidentes com os do capital, fazia um apelo
pungente ao presidente norte-americano para que «não abandone» a Venezuela.
Sublinhando que um referendo ainda este ano «não se
realizará sem a pressão da comunidade internacional» o editorial do jornal da
praça financeira nova-iorquina justificava a ofensiva, ao aconselhar o
presidente Barack Obama, pois este «poderia conseguir muito mais» do que «a
abertura com Cuba» «se ajudasse a Venezuela antes de (Maduro) concluir o seu
mandato».
Em sucessivas peças sobre o referendo, El País, como a MUD, obstina-se em acusar o CNE de não informar
sobre datas e procedimentos para o referendo, dando cobertura a uma nebulosa
que a direita tanto porfia em adensar.
Sucede que o CNE já publicitou como decorrerá o processo de
referendo, com datas, prazos e procedimentos, tendo fixado desde 24
de Agosto a altura (entre 14 e 16 de Setembro) em que seria definitivamente
anunciado o prazo para a recolha de assinaturas.
Chegados ao dia da famosa “tomada” de todas as cidades da
Venezuela pela MUD, 14 de Setembro, o que aconteceu? Nada do que se
assemelhasse a uma “tomada” de uma cidade, sequer de um vilório, uma
manifestação, uma concentraçãozinha…
A MUD, que mantinha conservações para o diálogo com o
Governo mas as pretendia
secretas, decidira afinal esperar o anúncio do CNE e adiava a «conquista»
da Venezuela nas ruas. Mas o jornal da Prisa não regateia o apoio à campanha da
direita latino-americana em recomposição.
Omitindo que a Venezuela
reagira com veemência a uma decisão que viola o tratado do Mercado Comum do
Sul (Mercosul), El País respaldo à
direita revanchista que recupera os comandos na região, especialmente no Brasil
(foi golpe, sim, senhor!), dando voz apenas aos
que pretendem impedir ilegitimamente Caracas de assumir a presidência
semestral do bloco.
Adiada a famosa “tomada” urbana da Venezuela para o dia 16, que
aliás impediu
o CNE de cumprir o prazo para o anúncio das «condições» para o requerimento
do referendo, de que nos deram conta a imprensa local e a imprensa global
galhardamente representada por El País?
De que, sim, houve uma nova «marcha
contra o novo atraso no revogatório», mas sem descerem ao pormenor da dimensão
e dos efeitos da dita-cuja. Há detalhes dos quais o «jornalismo global de
referência» se dispensa. Basta o selo de «credibilidade», não é?
[1]
«Oposição a Maduro convoca jornada de protesto de 24 horas”, titulava o Diário de Notícias na edição de 8 de
Setembro
[2]
Ver, sobre este e outros problemas do «jornalismo de referência» de El País, «O Novo Jornalismo Fardado – El
Pais e o Nacionalismo basco», de Angel Rekalde e Rui Pereira, Campo das Letras,
2003