A Autoeuropa e o fervor anti-sindical
A última semana foi marcada pela greve dos trabalhadores da
Autoeuropa, que os órgãos de comunicação social não se cansaram de rotular
«histórica», mas não necessariamente pelas melhores razões segundo a leitura
prevalecente nos próprios media.
Foi uma greve tão histórica que pelo menos dois jornais[1]
guindaram a «figura da semana», não o líder sindical ou a organização sindical
que conduziu a importante jornada de luta, mas, de forma exaltante, nada menos
que a pessoa – o antigo coordenador da Comissão de Trabalhadores – que mais se
destacou no ataque ostensivo e ofensivo aos sindicatos e aos próprios
trabalhadores que massivamente votaram e cumpriram a greve.
Com o fervor anti-sindical dos editocratas e para gáudio dos
patrões[2],
que vêem reflorescer o divisionismo entre os trabalhadores, os media, que abandonaram há quase três
décadas a «rotina» informativa sobre trabalho e sindicalismo, mostraram sem
pudor o lado obscuro da captura do campo jornalístico pelos interesses do
capital.
Mário Soares teve a ambição de «partir a espinha à
Intersindical», mas não o conseguiu, nem com a central sindical fabricada com
conluio com Sá Carneiro. Revisitando o que se leu, ouviu e viu nos meios de
informação em relação à luta dos trabalhadores da Autoeuropa – na senda, de
resto, do comportamento em relação a outras lutas –, apetece perguntar se os media se assumem os herdeiros dessa
missão.
O que é patente é que, sem a mínima prudência no resguardo
de imparcialidade que deveriam seguir, os órgãos de informação que se reclamam
independentes tomaram partido por um dos lados, numa ressonância pública e
impúdica das campainhas de alarme dos interesses patronais que retiniram com
fragor nas redacções.
Uma análise, mesmo não exaustiva, ao conteúdo da «cobertura»
jornalística da jornada, tanto na sua preparação desde o início de Agosto como
no próprio dia e nos dias seguintes, evidencia oito linhas-força, ou
ideias-chave, da narrativa patronal e do divisionismo, à qual os meios de
informação deram enfático destaque.
Em muitos casos, fizeram-no com abundância e sobrevalorização
de pormenores, designadamente as «contrapartidas» da empresa, que os
mal-agradecidos trabalhadores parecem recusarem, como se tivessem ensandecido,
para escândalo de editorialistas, patrões e dirigentes do CDS, do PSD e… de
outros partidos que se dizem de esquerda.
Ei-las:
Primeira – Portugal necessita absolutamente da Autoeuropa e
do reforço da sua capacidade produtiva, pois a empresa, com um volume de
negócios anual de 1,5 milhões de euros[3],
representa 4% das nossas exportações[4]
e 1% do PIB[5].
Segunda – Essa necessidade justifica e legitima alterações
gravosas aos horários de trabalho, com a imposição de trabalho ao sábado, que
passa a ser dia “normal”, e a diminuição da retribuição do trabalho suplementar,
que na realidade passa a ser pago com bonificações que, evidentemente, os
trabalhadores deveriam aceitar[6].
Terceira – A Comissão de Trabalhadores estabeleceu um
pré-acordo com a Administração da Empresa, mas os trabalhadores, acometidos por
uma súbita irresponsabilidade colectiva, decidiram causar danos muito sérios à
“paz social” que reinou, praticamente incólume, durante mais de duas décadas na
empresa, rejeitando o texto com 74,6% dos resultados de uma consulta directa e
por voto secreto.
Quarta – Isso aconteceu porque os trabalhadores foram
instrumentalizados «por quatro ou cinco populistas»[7]
do sindicato «afecto à CGTP» e desautorizaram a Comissão de Trabalhadores, que
se demitiu em consequência dos resultados da consulta[8].
Quinta – O sindicato, que pelos vistos não metia prego nem
estopa na Autoeuropa, está a «preencher o vazio deixado pela demissão» da CT,
ameaçando a obra de paz social e obtendo um «protagonismo» ilegítimo, pois a
Administração só negoceia com a dita comissão[9].
Sexta – O sindicato carece de legitimidade não só para
conduzir a luta, mas também para representar os trabalhadores, apesar a confirmação
da rejeição do pré-acordo entre a CT e a administração e da greve do dia 30,
bem como o mandato para que represente os trabalhadores em reunião urgente com
a Administração ter sido sufragada em plenário com mais de três mil
trabalhadores, com apenas sete abstenções e um voto contra[10].
Sétima – Se a administração da empresa «não conseguir
convencer os trabalhadores»[11],
o mais certo, numa linha de pura chantagem, é deslocalizar a produção do novo
modelo da Wolkswagen para outro país, como acontecera, alega-se, com a fábrica
da Opel na Azambuja.
Oitava – Tudo o que doravante acontecer de mau será culpa dos
sindicatos[12].
Em contrapartida, aspectos essenciais foram claramente
subvalorizados, desvalorizados e até escamoteados, designadamente o direito ao
descanso, à saúde e às relações sociais e familiares, o valor efectivamente
baixo da retribuição do trabalho suplementar, o risco de retrocesso de
direitos, incluindo, de futuro, o de descanso ao domingo, bem como a obrigação
da empresa de respeitar os seus compromissos com o estado Português[13],
que a tem apoiado.
Mas isso, face aos sacrossantos interesses do capital, são minudências
informativas pouco relevantes…
[1] Sol (suplemento B.I.) e Público, edições
de 2 de Setembro
[2] Veja-se,
entre outros materiais, a entrevista – mais uma! – do presidente da CIP ao Expresso (edição de 2 2 de Setembro): «O
que se passa na Autoeuropa é uma luta por poder sindical, adulterando um activo
enorme que é a estabilidade social da empresa».
[3] Expresso, 2 de Setembro
[4] Público, 29 de Agosto e 2 de Setembro
[5] Diário de Notícias, 29 de Setembro
[6]
Pormenores sobre esta contrapartida encontram-se na generalidade dos meios de
informação, incluindo em editoriais e artigos de opinião, valorizando a generosidade da empresa. Só falta
sugerirem que, tendo em conta a importância estratégica da Autoeuropa, não
viria mal ao mundo se os trabalhadores vendessem também o domingo…
[7] António
Chora, entrevista, aliás carregada de insultos, incluindo à inteligência e à
autonomia dos trabalhadores, ao Jornal de
Negócios, 30 de Agosto
[8] É
curioso que nenhum órgão de informação, que se tenha presente, tenha perguntado
à Comissão de Trabalhadores por que razões não acatou a decisão democrática,
aliás tão esmagadora, dos trabalhadores.
[9] Veja-se,
entre outras muitas outras peças, que incensam o «papel único» da CT, numa
espécie de sindicalismo de substituição, isto é, arredando para fora da empresa
os sindicatos e pondo-a a negociar matérias da competência legal dos sindicatos,
a já referida entrevista de Chora ao «Negócios» e a curiosa chamada a toda a
largura da primeira página do i de 30
de Agosto: «Trabalhadores das empresas fornecedoras da Autoeuropa estão contra
a greve». Dentro, o jornal destaca que empresas fornecedoras e a comissão
coordenadora das comissões de trabalhadores do Parque Industrial de Palmela
insurgem-se contra a «o protagonismo dos sindicatos». Esquece-se apenas de
referir que a posição da referida «coordenadora» data de 27 dias antes e que já
não era propriamente novidade…
[10] Público, 29 de Agosto
[11] Diário de Notícias, 29 de Agosto
[12]
Veja-se, entre outras peças, escamoteando que a deslocalização da fábrica da
Opel estava há muito decidida, a entrevista de Chora já referida, o parágrafo
final do editorial do Diário de Notícias
de 30 de Agosto: «Em 22 anos, só duas greves gerais beliscaram a paz social na
Autoeuropa. Essa tradição parece ter os dias contados e, perante a manobra do
poder dos sindicatos nas últimas semanas, só resta esperar que os mais de 3300
trabalhadores da Autoeuropa não acabem estes dias carregados de direitos e sem
fábrica para trabalhar».
[13] Como
alerta, em rara referência, o dirigente do SITE Sul, Público, 29 de Agosto