As emoções como mercadoria


Apesar dos impressionantes progressos científicos e tecnológicos operados ao longo dos anos, com avanços extraordinários em meios de diagnóstico e tratamento, estratégias e protocolos terapêuticos, bem como dos assinaláveis êxitos de cura e melhoria da qualidade de vida, as doenças oncológicas continuam a infundir o maior receio nas populações.
Tal receio, muito associado a desconhecimento, falta de informação e persistência de mitos e preconceitos, mas também a sofrimento e angústia, leva frequentemente a encarar o próprio contacto com doentes oncológicos com atitudes defensivas completamente injustificadas. Muitas pessoas estão ainda hoje persuadidas de que se trata de uma doença contagiosa, sendo de toda a prudência evitar qualquer convívio.
As próprias representações, digamos, «literárias», da doença como recurso metafórico, exprimem, por vezes com rudeza, efeitos destrutivos e devastadores, como se fora um anátema, quando se pretende advertir o auditório para certos problemas, fenómenos ou comportamentos. Por exemplo, «como um cancro que corrói», como nesta frase, extraída de uma homilia do papa Francisco (1 de Janeiro de 2017): «A orfandade espiritual é um cancro que silenciosamente corrói e degrada a alma».
Apesar da proximidade jornalística com o cancro, através da publicação de inúmeros trabalhos sobre as diversas patologias, descobertas, progressos, dados epidemiológicos, estatísticas sobre causas e consequências e outras abordagens, os próprios media parecem reflectir, em certos contextos, a atitude geral da sociedade, prisioneira desse temor.
É o caso especialmente nos obituários relativos a pessoas de notoriedade, nos quais a menção ao cancro como causa do óbito é, ainda hoje, frequentemente omitida com pudor, com recurso a fórmulas eufemísticas que colocam a palavra maldita atrás do biombo de recato: morreu vítima de doença prolongada…
Paradoxalmente, contextos há em que os media recorrem ao termo com o exagero da parangona, sobretudo quando se trata de pessoas com presença frequente nas capas de revistas e em certos programas televisivos, cuja doença, tratamento e cura ou desfecho dramático acompanham.
É difícil julgar e muito perigoso generalizar, mas certos títulos e certas narrativas geram, por vezes, dúvidas legítimas sobre se certos órgãos de comunicação social pretendem mais granjear audiência à custa do sofrimento alheio, atribuindo ao cancro um valor-notícia garantido em função do dramatismo que a doença envolve, do que contribuir para desmitificar a doença, transmitir mensagens de «esperança» e, sobretudo, difundir informação de promoção da prevenção e do diagnóstico atempado.
Ainda que pouco se reflicta sobre este problema, o valor-notícia do sofrimento e os limites à sua utilização no quadro de um exercício eticamente responsável do jornalismo e respeitador da esfera da privacidade dos doentes e das famílias, a verdade é que ele está presente no quotidiano dos media e a reclamar mais atenção.
Ainda na semana passada foi notícia a morte de uma criança lusodescendente, no Canadá, esmagada por um veículo que, alegadamente destravado, mal travado, ou devido às condições atmosféricas então verificadas, ou outras causas (as investigações o dirão), deslizou de encontro ao automóvel em que iria ser conduzida a casa, depois de sair do jardim-de-infância.
O que era notícia? A consequência (as lesões fatais) e as causas, quaisquer que fossem e a cuja discussão alguns media locais deram importância, problematizando até as condições de paragem ou estacionamento para largada e recolha das crianças utentes da escola. Nada que justificasse grande atenção nomeadamente dos meios de informação portugueses...
Há, porém, um pequeno detalhe que muda a importância do acontecimento. Ouvida por um órgão de informação local, uma amiga da mãe da vítima, naturalmente condoída e solidária com a tragédia que é sempre a perda de um filho, acabou por revelar um pormenor cuja singularidade acrescentou em drama à ocorrência e que os media logo agarraram.
Ao acentuar que o fatídico acidente se deu numa altura em que a família vivia especialmente feliz, depois de, em Fevereiro do ano passado, ter recebido a notícia de que a menina, agora com 5 anos, estaria curada de um cancro, diagnosticado três anos antes.
Revelado provavelmente por impulso num quadro de justificável comoção, o facto, que deveria ter permanecido na esfera da privacidade da família, não tem qualquer nexo de causalidade com a ocorrência objeto da notícia. A criança foi colhida porque um automóvel não se encontraria estacionado em condições de segurança e não porque tivesse sofrido uma determinada doença.
No entanto, a revelação mudou o curso da notícia, alterando a «categoria» noticiosa da vítima. Afinal já não era apenas uma menina de 5 anos, morta numa ocorrência tragicamente furtuita que poderia ter atingido outra menina, ou outro menino da sua escola, ou uma criança a milhares de quilómetros dali. A personagem central da «estória» passou a ser «uma sobrevivente de cancro», que «morre atropelada».
Foi assim que a apresentaram alguns media locais, e assim que a apresentou boa parte dos meios de informação em linha portugueses, mencionando a condição de «sobrevivente a cancro» em títulos, pós-títulos e no «miolo» da notícia.
Não porque tal «categoria» revestisse manifesta relevância e interesse públicos – que são requisitos indispensáveis para uma eventual cedência deontológica ao dever de respeitar a privacidade das pessoas. Mas porque a omissão desse «facto» não geraria tantas partilhas e visitas como as que os órgãos de comunicação digitais colecionaram, sendo mesmo a notícia mais lida do lida em pelo menos um deles.
Carece de maior estudo a ponderação sobre se este caso reveste uma violação deontológica com gravidade. Mas talvez valha a pena reflectir, a partir dele, sobre os riscos da deriva dos media, cedendo à tentação da exploração do sofrimento alheio e alimentando a comiseração electrónica dos internautas para «enfardar» as audiências com a mercadoria das emoções. Nunca se sabe por que caminhos ínvios irão, se assim continuarem.

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