Dilma Rousseff em Lisboa
A Presidente eleita do Brasil, Dilma Rousseff, destituída em Agosto do ano passado num golpe parlamentar urdido pela direita brasileira, apoiado por sectores conservadores e revanchistas do mundo empresarial e dos media, esteve em Lisboa na semana passada.
O pretexto para a visita foi a conferência «Neoliberalismo,
desigualdade, democracia sob ataque», que proferiu no dia 15, no Teatro da
Trindade, a convite das fundações José Saramago e Inatel, do Centro de Estudos
Sociais da Universidade de Coimbra e da Casa do Brasil em Lisboa, inaugurando o
ciclo «Conferências do Trindade».
Do importante conteúdo
da conferência, a generalidade dos media
portugueses não deu eco. Os telejornais dessa noite nos canais generalistas
ignoraram-na, embora a RTP tenha emitido, no mesmo serviço do dia seguinte, uma
reportagem sobre esse acontecimento, na qual incluiu apontamentos nas imediações
do teatro, cuja lotação fora lotada, antes e depois da palestra, bem como uma
menção ao facto de esta ter sido transmitida num ecrã exterior.
A generalidade dos jornais também não acompanhou a
conferência. Um take da agência Lusa
foi publicado no Observador e nos
sítios electrónicos da TSF e da SICNotícias ainda na noite do dia 15, mas todas
as edições impressas dos jornais do dia seguinte, 16, foram omissas. Só o
jornal i narrou o acontecimento no
dia 17, concedendo-lhe duas páginas.
«Dilma passou por Lisboa em pré-campanha por Lula da Silva»,
titulava no rodapé da primeira página, num registo retomado no título da impressiva
reportagem publicada no interior – «Brasil. Dilma passou pelo Trindade em
pré-campanha por Lula» – construída em torno de um eixo narrativo semelhando a cobertura
de um verdadeiro comício.
Inúmeros elementos do texto, traduzindo uma interacção
oradora-auditório, muito explicável pelos dotes (e pela experiência) da oradora
e pela exuberância tropical do seu jeito,
e uma cumplicidade entre o auditório e a Presidente ilegitimamente destituída
(foi golpe, sim!) ajudam a dar corpo à figura – comício – escolhida pelo jornal, que o texto justifica: «Quem não
soubesse que ali iria ter lugar a primeira conferência (…), certamente pensaria
ter entrado, por engano, num comício do Partido dos Trabalhadores (PT) brasileiro».
Eis o levantamento:
«Uma casa cheia de apoiantes em
delírio»; «voltou a pregar pela candidatura de Lula da Silva»; «lá fora, (…)
acotovelava-se (…) um mar de gente sorridente. “Vim dar força à Dilma”»; «Traziam
cartazes»; «declamavam energeticamente um cântico de apoio: “Dilma guerreira da
pátria brasileira!”»; «O entusiasmo efervescente da rua é transportado para
dentro do edifício»; «e quando Dilma Rousseff aparece enfim no palco, até os
mais contidos explodem de satisfação»; «clima de fraternidade partidária por
meio de aplausos vibrantes no final de cada frase ou de manifestação de deleite»;
«Contida a euforia inicial, a sala encheu-se então de um silêncio devoto para
se ouvir Dilma»…
O texto prossegue com apontamentos do conteúdo da
conferência de Dilma, incluindo uma alusão ao enquadramento geopolítico feito
pela oradora – «o processo de transformação de grande parte da América Latina
numa região neoliberal» – ,um tema que o
i, mais preocupado em colorir o seu comício, poderia ter desenvolvido, com
proveito para os leitores, mesmo aqueles que não comungam do ideário da
histórica revolucionária brasileira.
De facto, está em curso uma poderosa ofensiva da direita revanchista
internacional que procura, a todo o custo, e sobretudo à força de uma campanha
de mistificações com a cumplicidade dos media,
recuperar terreno nos países do campo progressista, da qual são expressões o
golpe parlamentar contra Dilma e a perseguição a Lula da Silva, no Brasil; o
cerco internacional à Revolução Bolivariana, na Venezuela; o assédio na segunda
volta das eleições presidenciais do Equador, a 2 de Abril; e o apoio
internacional a Maurício Macri, na Argentina. É pena a cobertura jornalística da
visita de Dilma ter perdido a oportunidade para ajudar a explicá-la com um
testemunho vivido e sofrido.
Na véspera da conferência do Trindade, Dilma Rousseff
concedeu, na Fundação José Saramago, o que deveria ser uma conferência de
imprensa muito importante. Não é todos os dias que os jornalistas (portugueses
e não só…) têm à sua disposição uma personalidade tão fascinante como a
militante progressista que ajudou a virar páginas decisivas nas vidas de largos
milhões de brasileiros e é protagonista central de um sinistro processo de
destituição como aquele a que o mundo assistiu, incrédulo, no último Verão.
Quase todos os órgãos de informação– incluindo aqueles que
«seguiram» o encontro apenas através da Agência Lusa – trataram a conferência
de imprensa em geral com sobriedade noticiosa, pontuando com citações ou
sínteses do pensamento de Dilma o que esta começou por expor e o que respondeu ao
que lhe foi perguntado sobre as causas, motivações e pormenores do processo; os
papéis centrais de sectores financeiros e empresariais e da própria comunicação
social no golpe; as conquistas alcançadas com as políticas económicas, sociais
e educativas dos seus governos e dos de Lula da Silva; os retrocessos impostos
pelo golpista Temer e as consequências futuras («Pobres e velhos do Brasil
ficaram “sem passaporte para o futuro”», titulou o Público; o seu próprio futuro e a necessidade de recandidatar o
velho líder do PT; e até o entusiasmo de Dilma por aquilo a que, erradamente,
chamou «coligação progressista» no Parlamento português…
Ora, precisamente (?!), «se ninguém se tivesse lembrado de
fazer uma pergunta sobre o acordo parlamentar em Portugal”, segundo o jornal
Público (que, pelos vistos, não sabe que não há um «acordo parlamentar»…) o
«único tema» da conferência de imprensa seria a «dissecação de um “golpe
parlamentar”», numa «conversa com jornalistas que mais pareceu uma aula de
anatomia», segundo o jornal.
A observação sobre a existência de uma pergunta que, pelos
vistos, salvou a monotonia temática
da conferência de imprensa, não deixa de ser intrigante e até interessante.
Porque o corpus de notícias do dia e
observações, como a do repórter da TSF – «Mas durante bem mais de uma hora,
houve tempo para outros temas” – indicia alguma diversidade de assuntos. Mas,
sobretudo, porque é aos profissionais que cabe a missão de transformar um mero «encontro
com jornalistas» em verdadeira conferência de imprensa – que no Brasil se
designa frequentemente «entrevista colectiva».
Uma regra consensual é que o jornalista que conduz uma
entrevista deve ter preparadas pelo menos umas seis boas perguntas e saber explorar
as respostas sucessivas. Também é aconselhável que um repórter enviado a uma
conferência de imprensa tenha duas perguntas suficientemente interessantes para
colocar, na perspectiva de obter – partilhadamente – respostas úteis para o
público.
Tal
como na entrevista, o jornalista que cobre uma conferência de imprensa é um
agente activo, participante, mesmo sedento de informação (sem ser
inconveniente) que o ajude a compreender e a contextualizar os factos que
permitam ao público a formar a sua opinião. É isso que faz dele um mediador de
corpo inteiro no processo. A menos que prefira ser um mero observador – o que
não é ilegítimo e muito os fazem com enorme talento, mas não se queixe do
enfado.
(Publicado em AbrilAbril)
(Publicado em AbrilAbril)
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